Joice Hasselmann e o judeu ideal

“(…) Depois do meu batismo na Igreja Batista, eu fui batizada no Rio Jordão. É isso mesmo. O primeiro país que eu quis conhecer quando ganhei o meu primeiro dinheiro foi Israel, sou apaixonada por Israel. Me descobri, há três anos e meio ou quatro que sou judia, filha de judia, neta de judia. Eu vim de ventre judeu e tenho orgulho disso. Então Deus me proporcionou a realização de um sonho: ir para Israel, ser batizada no Jordão e, alguns anos depois, ter a honra de ser escolhida a embaixadora extraordinária de Israel. Então é uma cristã apaixonada por Jesus e uma judia, com muito orgulho, que defende e sempre vai defender a Terra Santa.”

Este discurso foi feito pela deputada federal do Partido Social-Liberal (PSL) Joice Hasselmann, em plena campanha eleitoral para a prefeitura da cidade de São Paulo em 2020, em vídeo que circula pela internet. O discurso de Joice pode causar estranheza à primeira vista por vários motivos. Primeiro, pela tentativa de se aproximar de um pequeno país do Oriente Médio em uma campanha de prefeitura, ou mesmo a ênfase em se colocar como pertencente a uma comunidade pouco relevante em termos demográficos e eleitorais, que é a comunidade judaica. Porém, o que mais pode causar espanto é a ênfase em dois orgulhos que saltam aos olhos como contraditórios: ser judia e amar Israel e, ao mesmo tempo, ser cristã e “apaixonada por Jesus”. 

Essas ideias podem parecer confusas, ilógicas ou improvisadas demais para uma candidatura à prefeitura em vários sentidos, até pela falta de propostas concretas oferecidas no vídeo. Contudo, esse discurso foi pensado cuidadosamente para agradar um eleitorado muito bem delimitado, que não deve enxergar nesse discurso nenhum tipo de contradição. Para explicar a lógica por trás disso, vamos voltar um pouco no tempo.

Joice Cristina Bejuska, ou Joice Hasselmann, como prefere ser chamada, foi eleita a deputada federal mais votada do Estado de São Paulo em 2018, com mais de um milhão de votos. O fantástico desempenho veio na esteira do sucesso da popularidade do até então candidato Jair Bolsonaro, se filiando também ao PSL, o mesmo do Presidente da República, depois de uma atuação decisiva nas redes sociais como defensora da Operação Lava-Jato, do combate à corrupção, e do juiz Sérgio Moro, que viria a ser o Ministro da Justiça após as eleições.

Dois anos depois, muita coisa mudou. Moro e o presidente viraram adversários políticos, Bolsonaro saiu do PSL e Joice, ainda no partido, se afastou da figura do presidente. Agora, tenta conquistar a prefeitura da cidade de São Paulo. Apesar de não ter o apoio do presidente, a campanha da candidata visa atingir o público bolsonarista paulista, com o mesmo discurso conservador que a levou à Câmara dos Deputados.

Sabemos que a aproximação do bolsonarismo com Israel não é novidade. A bandeira israelense é presença certa em várias manifestações de rua a favor do presidente, seus filhos viajam para Israel e aparecem com camisetas em homenagem ao país com razoável frequência e a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém foi uma promessa da campanha presidencial que não pôde ser cumprida por interesses geopolíticos do agronegócio. Analistas políticos costumam explicar essa aproximação como um aceno ao público evangélico, núcleo atávico do bolsonarismo, na interpretação bíblica de Israel como a Terra Santa. Mas Joice vai além disso. Ela faz questão de trazer o judaísmo para o centro do debate, reivindicando sua origem judaica, amor por Israel e, ao mesmo, orgulho cristão e adoração por Jesus. A pergunta que fazemos a partir disso é: qual a lógica por trás da construção desse discurso?

Para isso, voltamos ao ano de 2017, ano da fatídica palestra do até então candidato Jair Bolsonaro no clube Hebraica, no Rio de Janeiro, onde ele proferiu ofensas racistas a indígenas e quilombolas para uma plateia de judeus que aplaudiram seu discurso. Ao mesmo tempo, ao lado de fora, centenas de outros judeus protestavam contra a realização do evento. Dentre os ataques a muitas minorias, Bolsonaro chamou àqueles judeus que protestavam contra sua chegada de “vagabundos”, e ainda assim foi aplaudido pela plateia. A hostilidade não termina com o fim da palestra: muitos dos judeus que apoiam Bolsonaro começaram a chamar os protestos de “Pogrom de Laranjeiras” e daí começamos a entender a construção de discurso.

“Pogrom” é o nome que se dá aos ataques violentos sofridos por minorias judaicas, que aconteceram principalmente nos países do Leste Europeu nos séculos XIX e XX, por causa de antissemitismo. Assim, ao chamar o evento de pogrom, judeus bolsonaristas assumem que os judeus de esquerda que protestavam não eram apenas adversários políticos – eram inimigos, e não eram mais considerados judeus. Judeu, então, vira uma categoria política, de pessoas conservadoras, de direita e bolsonaristas. Para essa parte de judeus, há uma desconversão de judeus de esquerda como membros de uma mesma comunidade, e uma reconversão própria a uma nova comunidade de conservadores e bolsonaristas – que, no imaginário dessas pessoas de direita, é conhecida como “civilização judaico-cristã”. Essa representação também é compartilhada por bolsonaristas de fora da comunidade judaica, que enxergam no judaísmo uma essência branca e conservadora.

Israel, então, seria uma representação dessa comunidade. Não como um país de uma pluralidade étnica e judaica, mas sendo a primeira fronteira dessa civilização judaico-cristã contra o mundo árabe, comunistas, feministas, ou qualquer outro grupo que poderia ameaçar os valores que essa civilização judaico-cristã prega – além de ser a Terra Santa.

Voltamos à Joice Hasselmann. Para seus prováveis eleitores, filhos do bolsonarismo, a origem judaica da candidata indica uma filiação étnica aos valores conservadores pregados por sua campanha. Os batismos na Igreja Batista e no Rio Jordão são uma confirmação de seu compromisso com as referências religiosas e com um projeto de país conservador. Assim, a adoração por Jesus e o amor por Israel não são contraditórios, mas pertencentes a um mesmo projeto de civilização judaico-cristã, que é o ideal de país imaginado pela chamada onda conservadora, nova direita ou qualquer outro termo que explique a ascensão política de Jair Bolsonaro.

Para o bolsonarismo, Joice Hasselman pode ser judia, e talvez seja o ideal mais perfeito de judaísmo. Um judeu de esquerda, não.

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