Guerra, ideologia e amor em cartas inéditas de judeus brasileiros em Israel há 80 anos

TEL AVIV – Guerra, ideologia e amor. Como era a vida de brasileiros de movimentos juvenis que se aventuravam a morar em Israel nos primórdios da independência do país, há 70 ou 80 anos atrás? Como era deixar o Brasil das décadas de 40 ou 50 do século passado para morar num kibutz, na ilusão de viver numa utopia coletiva e construir um novo país para os judeus logo após o Holocausto? 

O livro “Encantos e desencantos – Nas carta de jovens pioneiros do Dror e Hashomer Hatzair 1940-1950”, do escritor e pesquisador brasileiro-israelense Avraham Milgram, tenta responder a essas perguntas e tantas outras, sobre um capítulo da comunidade judaica brasileira quase esquecido. “A correspondência reflete a etapa inicial inusitada de uma cultura que não resistiu ao tempo e como outros fenômenos históricos se encontra desmemoriada”, escreve o autor. 

O livro é uma espécie de continuação do anterior, “Fragmentos de memória” (2010), que desfilava memórias de participantes de movimentos juvenis que fizeram aliá (migração para Israel) levados pelo sionismo e pelo socialismo. Mas, desta vez, em vez de textos autobiográficos escritos anos depois dos fatos, o que vem à tona são cartas da própria época. Missivas escritas à mão ou máquinas de escrever enviadas de Israel para parentes e amigos no Brasil – e também na Argentina – relatando em primeira mão o que acontecia.  

Milgram passou anos coletando essas cartas, tesouros encontrados no arquivo digitalizado do Dror e na biblioteca do Shomer (no kibutz Givat Haviva) e algumas outras fontes. Para ele, a memória dos primórdios dos movimentos juvenis sionistas-socialistas – que formaram tanta gente no Brasil – precisa ser lembrada. 

O TRAUMA DA GUERRA

Algumas das cartas mais emocionantes são as dos veteranos que participaram da Guerra da Independência de Israel, em 1948. Eles desembarcaram no porto de Haifa e quase que imediatamente tiveram que encarar combates sangrentos. O choque, obviamente, foi grande.

A primeira carta é de 24 de abril de 1948, a menos de um mês antes do começo da Guerra da Independência, em 15 de maio. Foi escrita por Chaim Yaari (Achim Waldman) – nascido em Berlim mas que fugiu para o Brasil com a família em 1939 – para seus primos Efraim e Haim Knaan (Kaufman), que moravam no Rio de Janeiro. Ela havia chegado há pouco em uma Israel pré-Estado, cheio de ideologia e quase eufórico com a nova vida. 

Mas não tinha ideia de que havia chegado em um país praticamente em guerra, em um dos pontos nevrálgicos do Sul: o kibutz Negba, maior posto israelense na região e que foi atacado e destruído pelo exército egípcio que tentava chegar a Tel Aviv. O kibutz foi apelidado na época de Negbagrado – numa referência ao cerco a Stalingrado, durante a 2ª Guerra Mundial. Na segunda carta, de 6 de agosto de 1948, a dor e o sofrimento já eram visíveis. Ele escreve: 

“Jaime, não vou te escrever os combates nos quais participei, pois a lista seria muito longa. Te narrarei dois pequenos episódios. Um aconteceu no primeiro dia da guerra, quando eu não sabia ainda o que era um bombardeio aéreo e um canhoneiro de artilharia. Estava eu na torre d’água, como observador, quando aparecem os primeiros tanques a uma distância de cerca de 2 km. (…) A agitação foi grande e temíamos o pior, pois nesta ocasião as nossas possibilidades de defesa eram quase nulas.”

“De repente, o primeiro projétil vem. Explode cerca de 400 m antes do kibutz. O segundo a 400 m detrás. Eu estava, então, pensando e dizendo para os meus botões que esses caras são uns “errados”, pois nem mirar sabem. Exatamente aí veio o terceiro projétil. Eu em verdade não soube disto, pois de repente, sinto-me jogado para trás e quando recobrei os sentidos, já explodia o quarto projétil exatamente na torre d’água, talvez uns 3 m de onde eu me encontrava. Eu não via nada por causa da fumaça e sentia como a torre vibrava com cada projétil que a perfurava. (…) Jaime, creio que nunca vou sentir coisa igual. (…) Aprendi nesta guerra o que quer dizer medo, pânico e horror. Aprendi também todas as maneiras modernas e menos modernas de como extirpar a vida alheia”.

COLETIVO VERSUS INDIVÍDUO

Outras cartas dos veteranos de movimentos juvenis exploram uma questão essencial: a ideia de que o coletivo era um valor fundamental e prioritário. Nada de individualismo e vida pessoal privada. O “nós” predominava sobre o “eu” e sobre a vida familiar dos militantes, que deveria ficar em segundo plano. Quem infringisse essa lei básica era expulso da tnuá (movimento). 

“Muitas cartas denotam justamente essa dissonância entre a família e o coletivo”, escreve Avraham Milgram, no livro. “Eles eram movimentos totais: exigiam uma abnegação total de alguém no movimento: abandonar família, abandonar estudos, abandonar a vida burguesa. Carreira e dinheiro? Nada disso. O ambiente local das comunidades no Brasil oferecia justamente tudo isso. O movimento vivia essa tensão”. 

Esse é o pano de fundo para a polêmica decisão do economista, escritor e professor Paulo Singer – um dos fundadores do Dror – sair do movimento. Singer, nascido na Áustria e que foi morar no Brasil em 1940, se tornou posteriormente um dos principais nomes da esquerda brasileira. Foi um dos fundadores do PT, em 1980.  

Em 1952, ele deveria fazer hachshará (treinamento) em Israel, o que levaria à sua aliá. Mas desistiu. Demorou muito tempo para ele dizer a verdade sobre o motivo real. Só falou sobre o assunto 50 anos depois, em depoimento publicado no livro “Fragmentos de memória”. Abaixo, a explicação: 

“Chegado o momento de embarque da minha geração, todos se preparavam para ir, mas eu não pude acompanhá-los. Como o kibutz aceitava parentes, esperava que minha mãe e meu padrasto pudessem viver comigo em Israel, mas minha mãe se recusou veementemente. E como, para mim, era inconcebível deixá-los, me vi diante de um dilema pessoal que mudaria o rumo da minha vida”.

“Tomada a decisão de não ir, foi necessário comunicá-la aos membros do movimento. Para isso convoquei uma reunião, mas não pude dizer a verdade, pois o fato de minha mãe não querer ir não era desculpa. Então disse apenas que não iria e argumentei que, como nosso objetivo era lutar para que não houvesse outro Holocausto, a maneira mais lógica para preservar a vida dos judeus seria apoiar a esquerda e acabar com o antissemitismo, o que poderia ser feito no Brasil. Mas apenas uma pessoa aderiu à minha ideia. Assim me vi obrigado a deixar o movimento”. 

O livro de Avraham Milgram contém uma eloquente e colérica resposta à saída de Singer de outro veterano do Dror, Bernardo Cymeryng (Dov Tsamir), que estava em Israel. Tsamir escreveu uma longa carta a Singer em 1952 ou 1953 (não se sabe exatamente a data). Milgram achou o rascunho da carta, escrita com letras minúsculas que ele teve que decifrar com uma lupa. Nele, Tsamir intuitivamente entendeu que o motivo da saída de Paulo Singer era uma questão familiar. Mas achava que a família é que o havia obrigado a ficar no Brasil. Abaixo, um trecho da carta: 

“Quando qualquer revolucionário trilha o seu caminho duro, ele é obrigado a se despir de uma série de obrigações que prendem o homem comum. (…) O revolucionário não pode ter o cordão umbilical familiar. (…) Quando se passa uma vida estúpida enfiado nas responsabilidades de um emprego medíocre, então não há importância para o contato familiar, mas quando a vida é dedicada a uma luta de ideias e de sociedade, então o filho é um carrasco malvado, não tem preocupação pela vida dos pais, é um ingrato”. 

A questão das expulsões dos chaverim (companheiros) que colocavam o “eu” e a família acima do coletivo, aparece bastante nas cartas. “É uma questão dolorida que precisamos entender no contexto do passado, não com os olhos de hoje”, escreve Avraham Milgram. Bastava namorar alguém menos compromissado com a tnuá para ele ser expulso, como mostra essa carta de dezembro de 1950 sobre a expulsão de Simão Coslovski e de Zico Galper, do Shomer:  

“Poderíamos acrescentar que Zico foi em grande parte levado pela sua bachurá (garota), a Blima, formando os dois um zug (casal) prejudicial ao coletivo, fechado em si mesmo. (…) Poderíamos citar, enfim, uma série de fatos, os quais são dispensáveis, pois o essencial nesses fracassos é a debilidade moral e intelectual desses elementos que não encontraram a forma de resolver os seus problemas pessoais dentro do coletivo, além de uma visível falta de arraigamento nos nossos ideais e falta de assimilação verdadeira do caminho shômrico”.

EXPULSÃO DE MOACYR SCLIAR 

Outra expulsão incrível do Habonim Dror (a julgar por nosso olhar contemporâneo) foi a do famoso escritor, cronista, professor e médico gaúcho Moacyr Scliar, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2011. Uma ata inédita da assembleia que levou à expulsão de Scliar (apelidado de Mico) está neste livro. A ata descreve Scliar como um jovem jocoso e “cínico” que não se importa com o movimento. Ao que parece, os pais de Scliar não gostaram nada da ideia de ele passar um ano em Israel no Machon Lemadrichim (Instituto de Liderança) e acionaram a polícia, como se o Moacyr fosse membro de um culto que o sequestraria para Israel. O jovem foi advertido pela direção do Dror, acabou não dando grandes explicações e foi expulso. Sabe-se que, depois do Dror, ele se uniu ao Shomer. A seguir, trechos da ata: 

“É aqui que nos detemos um caso em específico. Cumpre salientar que o dito chaver (companheiro) fora proposto ao Machon, proposta esta aceita pelo grupo e pelo próprio chaver, embora em princípio discordasse. Mostrou sempre inconstância nas decisões extremas do grupo, embora fosse possuidor da maior bagagem ideológica do grupo todo. Sempre procurou fazer ver ao seu grupo que era medroso e que havia possibilidades de uma traição de sua parte”. 

“É importante notar também que seus pais cometeram verdadeiros escândalos para impedir a sua ida ao Machon, e para fazê-lo ingressar na faculdade de Medicina. (…) Os que tinham alguma ilusão a respeito do Mico perderam-na completamente. Na reunião com o grupo e que foi realizada na casa do chaver Gerson (Peixe), o chaver Mico foi capaz de falar sem dizer absolutamente nada durante um hora, não explicou as razões que o levaram a procurar outro movimento para sanar suas dúvidas com respeito ao Ichud Hanoar Hachalutzi; não explicou os motivos reais porque abandonava o seu grupo e o movimento”.  

“A ata explica que a direção da tnuá optou por sua expulsão do movimento “não pela sua fraqueza, pois desta merecia apenas compaixão, mas, sim pela sua alta traição com a qual devolvemos com todo nosso desprezo e nojo”.

TRADIÇÃO VERSUS O NOVO

Algumas cartas contam outro aspecto da época, que marcava o sionismo dos movimentos juvenis nas décadas de 40 e 50: a ideia de que Israel seria o começo de uma nova página para o judaísmo, destituída de tradições do passado. Os olim (imigrantes) almejavam deixar para trás o judeu antigo de um capítulo que, para eles, havia se encerrado com a Shoá, com a criação de Israel e com o advento de ideologias como o socialismo.  

Um exemplo disso é o relato de Walter Rehfeld em um Erev Shabat, dentro do navio que levava chalutzim (pioneiros) do Dror para Israel, em 1950. Na carta, ele escreve: “Os chalutzim opõem-se à toda a tradição. O seu espírito revolucionário também nesse campo aspira as novas formas, novo sentido, com exceção de alguns poucos extremistas, que são de opinião de que tudo que se relaciona de qualquer maneira com a religião pertence ao ‘mundo burguês’, não havendo mais lugar para tais assuntos em uma comunidade nova, socialista. Todos os chalutzim, também os menos extremistas, são contra ritos antigos e contra orações e versículos tradicionais, somente querendo reconhecer aquilo que se formou dentro da própria comunidade”.

CARTAS DE AMOR E OUTROS

No livro, não poderiam faltar também cartas de amor, como a de Abrahão Lubicz à namorada Eva, em abril de 1950: “Quando eu me propus a fazer hachshará (treinamento) e entrei no kibutz disposto a mudar radicalmente de vida, estava convencido de que estava no caminho certo, mas sentia ainda a falta de algo que não podia definir. Essa dúvida desapareceu quando te conheci, e agora estou convencido de que nada mais me faltará quando nós estivermos juntos”. 

Há vários outros assuntos que surgem com essas cartas que abrem um portal para o passado. Como o choque dos olim do Brasil e da Argentina ao encontrar uma realidade social totalmente diferente do que imaginavam, entre elas a presença de judeus empobrecidos vindos do mundo árabe e do Norte da África que foram colocados em maabarot (campos de refugiados) por todo o país. Eles não sabiam lidar com esse tipo de judeu, diferente do europeu que eles conheciam. Não raro demonstravam uma altivez intelectual típica da liderança judaica em Israel, nos primeiros anos do país. 

Além disso, o puritanismo dos movimentos, na época, é um tanto chocante para os olhos de 2021. No Shomer da Argentina, por exemplo, havia dez mandamentos, entre eles a proibição total de fumar e de se aproximar de pessoas do outro sexo (era preciso manter uma distância de 30 cm, no mínimo). Os membros desses movimentos se chocavam ao chegar na realidade de Israel, onde tudo era diferente.  

“O que eu quis, com o livro, foi focar no indivíduo, focar no dilema, na tensão que havia entre o coletivo e o individual”, diz Milgram. “São aspectos pouco encontrados nos arquivos das tnuot, que são, em geral, apenas administrativos. O livro mostra uma cultura que a gente não encontra mais”.

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