O medalhista olímpico israelense que não pode se casar em seu país

Artem Dolgopyat, de Israel, posa após ganhar a medalha de ouro após a final do aparelho masculino de ginástica artística de solo nos Jogos Olímpicos de Tokyo, em 1º de agosto de 2021. (Foto: AP Photo / Natacha Pisarenko)

TEL AVIV – O hino de Israel só foi ouvido duas vezes, até hoje, nos Jogos Olímpicos modernos. A primeira foi em 2004, quando o velejador Gal Fridman ganhou medalha de ouro em Atenas. A segunda foi nas atuais olimpíadas, em Tóquio, em 1° de agosto de 2021, quando o ginasta Artem Dolgopyat conquistou a medalha de ouro no solo. Mas, apesar de representar Israel tão bem no exterior, de ter se alistado nas Forças de Defesa de Israel, de ter nacionalidade e passaporte israelenses, Artem Dolgopyat não pode se casar em seu próprio país.

A emoção de ver a bandeira israelense tremulando e um atleta de Israel subindo na parte mais alta do pódio acabou levando a uma discussão antiga, mas atual, no país que se orgulha de ser a única real democracia do Oriente Médio. Na Israel do século 21, há cidadãos que não podem simplesmente se casar com quem quiserem (e não estou falando de membros da comunidade LGBTQ+, o que é outro assunto). E por quê? Porque não são considerados judeus pelo rigorosíssimo e conservadoríssimo rabinato ortodoxo israelense, que insiste em manter monopólio sobre quem pode ou não pode ser considerado realmente judeu em Israel.

Artem (pronuncia-se Artium) Dolgopyat, 24 anos, nasceu na Ucrânia e emigrou para Israel aos 12 anos. Seu pai, o também ginasta Oleg Dolgopyat, é judeu. Mas sua mãe, Angela Bilan, não. Se a mãe não é judia, o rabinato ortodoxo não considera Artem judeu – mesmo que ele tenha recebido cidadania israelense pela “Lei do Retorno”, quando chegou. Isso porque Israel aceita imigrantes através dessa lei (que oferece cidadania imediata a judeus) a quem tenha pelo menos um avô judeu.

Quer dizer: Artem é judeu para as autoridades israelenses, mas não é judeu para o rabinato. E o rabinato é quem define quem pode se casar pelas leis judaicas. Se você não tem mãe judia ou se converteu ao judaísmo por outras correntes judaicas (como conservadores ou reformistas), não pode se casar numa cerimônia judaica.

Ah, tá, mas ele pode se casar no civil, certo? Errado. Na Israel que se orgulha de sua democracia e modernidade, que se pretende como um país civilizado o Ocidental, não existe casamento civil. Só religioso. E mais: só podem se casar judeus com judeus, muçulmanos com muçulmanos e cristãos com cristãos. E quem, mesmo assim, decidir se casar com a pessoa que ama, independentemente de sua religião ou sem querer definir qual é a sua – ou se tem alguma – fé? Israel faz o favor de aceitar casamentos desse tipo realizados no exterior. O casal precisa se casar fora do país e voltar com uma certidão de matrimônio. Aí, o Ministério do Interior registra o par como casado.

Há quem defenda esse tipo de regra afirmando que, para os israelenses, “judaísmo” não é religião e sim nacionalidade. Mas seria como se, no Brasil, um cidadão brasileiro não pudesse se casar com um cidadão… sei lá… norueguês. É indefensável que não haja possibilidade de casamento entre quaisquer pessoas, independentemente de fé, nacionalidade, ancestralidade (e sim, gênero) diferentes. 

Essas regras, que mais parecem ser de um país teocrático do que de uma democracia moderna, transformam, para alguns, o medalhista olímpico Artem Dolgopyat em uma espécie de “cidadão de segunda classe”. Ele é bom para representar Israel e servir no exército, mas não para se casar em solo israelense. E isso enquanto a grande maioria dos israelenses quer o casamento civil. De acordo com uma pesquisa do Instituto de Democracia de Israel, realizada nas proximidades da última eleição, cerca de 65% dos eleitores apoiam a possibilidade de casamento civil para qualquer propósito. 

O próprio Artem, que é tímido e avesso a polêmicas, não quis entrar nesse tema, ao voltar a Israel com sua medalha de ouro, sendo recebido como herói no aeroporto. Em entrevista na TV, ele disse: “Não gosto de falar sobre minhas coisas pessoais. Se for permitido (o casamento civil), será muito bom, mas eu respeito todas as leis do país. E me orgulho deste país”.

Quem levantou a polêmica foi, na verdade, a mãe do atleta, Angela. Em entrevista após a vitória do filho, ela comentou – sem tom de reclamação – que seu filho tem uma namorada há quatro anos, mas não consegue se casar porque não tem tempo de deixar os treinos para viajar para o exterior. Imediatamente, recebeu o apoio de muitos políticos e líderes que representam os imigrantes da ex-URSS em Israel, mais de um milhão de pessoas que migraram desde 1989. Muitos não tinham mães judias.

O ministro do Turismo, Yoel Razvozov, ele próprio um imigrante da ex-União Soviética e atleta olímpico, disse: “Os cidadãos israelenses, não importa onde nascem, não devem passar por um processo tedioso e humilhante para obter a aprovação ou rejeição do rabinato para se casar”, tuitou Razvozov. “Não é lógico que o rabinato do mesmo país que Artem Dolgopyat representa com tanta honra não lhe conceda direitos civis básicos como se casar em Israel.” 

Hoje, mais de 350 mil israelenses de origem russa (ou de outros países da ex-URSS) se sentem discriminados. Muitos se consideram judeus (outros não) e são humilhados constantemente pelo establishment religioso. Para se casar, precisam implorar a rabinos que os reconheçam. Quando seus entes queridos morrem, não podem enterrá-los em cemitérios judaicos.

A nova coalizão de governo, que entrou em vigor há dois meses, não contém, pela primeira vez em décadas, partidos ultraortodoxos. Alguns dos partidos dessa nova coalizão (como o Israel Nossa Casa, o Meretz, o Partido Trabalhista e o Há Futuro) defendem há anos a bandeira de que o rabinato ortodoxo não deve continuar a manter o monopólio sobre o judaísmo e sobre as leis que regulam o cotidiano da vida no país. Agora é a hora de contemplar os cidadãos que não se encaixam nessa estreita visão de judaísmo e, em geral, dos cidadãos seculares que merecem direitos básicos.

Alguns passos já estão sendo dados em direção a isso, como a flexibilização no concedimento de documentação de Kashrut (lei alimentícia judaica) e restaurantes, antes dominado apenas pelo rabinato ortodoxo. Também foram dados alguns passos – ainda tímidos – na questão da conversão reformista e conservadora. Mas não se pode parar por aí.

A discussão sobre a identidade judaica de Israel, sobre o que é judaísmo e o papel da religião no Estado está no cerne das principais questões enfrentadas pelo Estado criado em 1948. Não minimizo a complexidade disso tudo. Mas se Israel quiser continuar a ser uma democracia liberal, precisa repensar o status quo do rabinato ortodoxo e contemplar o que a maioria de sua população – seculares e religiosos judeus de outras vertentes, bem como cidadãos não-judeus – quer.

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