Por que Ciro Gomes foi, sim, preconceituoso

Em geral, quando determinado grupo aponta para episódios de preconceito, pessoas que não fazem parte desse grupo aparecem para questionar (brancos, em casos de racismo; homens, em casos de machismo; heterossexuais, em casos de homofobia; não judeus em casos de antissemitismo). Isso costuma acontecer devido a uma identificação mais imediata com o emissor da fala preconceituosa do que com o seu alvo. Por não se considerar racista / machista / homofóbica / antissemita, a pessoa, num primeiro momento, nega que houve preconceito. Aí pode ser que:

1. A pessoa realmente acredita naquele preconceito (o toma, portanto, como um “pós-conceito” válido); ou

2. A pessoa nunca parou para pensar muito no assunto, não percebe por que aquele discurso feriu o grupo em questão e quer entender melhor.

Para todos aqueles que questionaram sobre onde estaria o preconceito de Ciro Gomes durante sua participação em live no canal Ilha de Barbados, em 14 de maio de 2020, vamos tentar mostrar.

Pra começar, vale retomar o contexto da fala:

Ciro Gomes: “Agora, repare: o Bolsonaro é católico, o Bolsonaro anda para cima e para baixo com a bandeira de Israel, o Bolsonaro…”
PC Siqueira: “Eu nunca vou entender, nunca vou entender por que que os caras andam com a bandeira”
Ciro Gomes: “Ah não? Procura saber de onde vem o dinheiro para o financiamento dos grupos de WhatsApp dele na campanha”
PC Siqueira: “É, deve ser por isso, né? É, pode crer”
Ciro Gomes: “Aí você vai entender facilmente”
Ciro Gomes: “O Bolsonaro foi batizado nas águas do rio Jordão como evangélico. Então, o cara é católico, é… isso é uma célula de três real. É o maior Zé Migué enganador que eu já vi na vida”
PC Siqueira: “Ele é ecumênico”
Ciro Gomes: “Ecumênico. É, isso aí”

Ciro parecia estar defendendo a ideia de que Bolsonaro é um oportunista: é católico, mas anda com a bandeira de Israel e foi batizado como evangélico. Não há preconceito aí. Ele provavelmente teria concluído bem o raciocínio caso não tivesse sido interrompido por PC.

Mas ao responder que a presença da bandeira tem a ver com o “dinheiro para o financiamento dos grupos de WhatsApp dele na campanha”, acabou traindo o próprio pensamento: trata-se, não de oportunismo, mas de uma dívida de campanha com pessoas ou grupos que querem vê-la ali.

Ao contrário de católicos e evangélicos, que teriam sido “enganados” por um Bolsonaro oportunista, Bolsonaro teria sido “comprado” por aqueles que lhe deram dinheiro para o disparo ilegal de mensagens.

A quem Ciro estava se referindo quando mencionou “dinheiro para o financiamento”? A Israel? O país deu dinheiro? Não parece fazer muito sentido. A empresas israelenses envolvidas no disparo de mensagens? Mas aí não se trata de “financiamento”, já que as empresas teriam sido pagas…

A judeus, então? A menção às religiões católica e evangélica no contexto da fala sugere que sim. Essa perspectiva é reforçada pela menção a um Bolsonaro “ecumênico” ao final.

Vale lembrar que, num passado recente, Ciro já havia citado os “corruptos da comunidade judaica, que acham que, porque são da comunidade judaica, têm direito de ser corrupto”.

Há que se considerar ainda o caldo cultural mais amplo que associa judeus a estereótipos relacionados a “dinheiro”, “conspiração” e “falta de lealdade à pátria” – ou “dupla lealdade”, com Israel na equação.

São tantos elementos que PC Siqueira logo entendeu o que Ciro estava querendo dizer, sem precisar ser mais explícito: “É, deve ser por isso, né? É, pode crer”. E finalizou: “Ele é ecumênico”. Gargalhadas gerais.

No arranjo “ecumênico” de que falam, os judeus entram com o capital. Velho preconceito que não carece novas explicações.

Importa notar que a expressão “Procura saber” para introduzir o assunto não é casual. Ciro a utiliza porque não pode dizer nada de concreto, apenas insinuar e contar com o preconceito alheio para fazer a ideia circular. Não tem provas do que diz, apenas “convicção”.

O que Ciro pretende com tudo isso? Talvez fazer com que, ao ver a bandeira de Israel em meio a grupos bolsonaristas, a gente “se lembre” que judeus estariam por trás da vitória de Bolsonaro, por meio de práticas ilegais como disparo em massa de mensagens e produção de fake news.

O que Ciro parece incapaz de entender é que o uso de símbolos judaicos pode não ser ligado somente aos judeus. No Brasil contemporâneo, em geral, não é. E que a bandeira de Israel se tornou uma marca da nova direita muito antes das últimas eleições – e não por obra dos judeus.

Temos muito a dizer a respeito. Por isso, a sugestão do encontro. Ciro não é inimigo. Não se trata de “cancelá-lo”, mas de chamar a atenção para o impacto destrutivo das palavras vagas que encontram ressonância em preconceitos históricos (ainda mais se ditas por alguém como ele). No momento da fala, mais de 100 mil pessoas já tinham passado pela live.

Mais responsável e produtivo seria se Ciro Gomes trouxesse evidências e desse nome e sobrenome aos bois a que se refere. Fazendo isso, encontrará, entre os judeus, inúmeros aliados.

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