Daniela Kresch
TEL AVIV – Desde a independência do país, em 1948, a sociedade israelense enfrenta a questão dos prisioneiros de guerra e pessoas desaparecidas. Houve prisioneiros no Egito, na Síria e em outros lugares. O caso do soldado Ron Arad é emblemático: ele foi capturado em 1986 por terroristas no Sul do Líbano durante uma missão da Força Aérea israelense e nunca mais reapareceu. Outro soldado, Gilad Shalit, foi sequestrado pelo Hamas em Gaza e ficou no cativeiro por cinco anos (2006 a 2011), mas voltou com vida em troca da libertação de 1.027 presos palestinos. Também houve vários casos de civis israelenses sequestrados e de corpos de soldados só devolvidos depois de negociações.
Mas, o 7 de outubro de 2023 é certamente o caso mais difícil de todos. Naquele dia fatídico, 251 pessoas (israelenses e estrangeiros, civis e militares, bebês e idosos, judeus e não judeus) foram sequestradas pelo grupo terrorista sanguinário Hamas e levadas para a Faixa de Gaza para servir de moeda de troca para exigências dos terroristas. Eles foram arrancados de suas casas, de suas camas, de dois festivais de música e de bases militares pegas de surpresa.
Onze meses depois, a sociedade israelense, dolorida e confusa, parece não conseguir se unir nem mesmo em torno desta questão. Na era da polarização política, as pessoas se dividem de acordo com seu apoio a um líder ou outro e não pela questão em si. “A pressão militar levará à volta dos reféns”, insiste o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seus apoiadores. Bibistas acreditam nele. Acreditam que Israel tem que resgatar os 101 reféns que ainda estão no cativeiro (dados de 7 de setembro de 2024) através da força bruta, através de pressão militar contra o Hamas, que convenceria o líder do grupo, o terrorista islâmico fanático Yahya Sinwar, a colocar o rabo entre as pernas e aceitar a libertação deles.
Mas, dos 117 reféns que voltaram vivos a Israel até o momento, 105 o fizeram através de acordos de troca de prisioneiros (outros 4 libertados unilateralmente pelo Hamas como “gestos de boa vontade” a governos estrangeiros). Apenas 8 foram resgatados vivos em ações heroicas de soldados israelenses. Netanyahu insiste em dizer que os acordos foram frutos da tal “pressão militar”. Pode ser verdade, no caso do acordo de cessar-fogo de novembro de 2023 – quando houve a maior parte das libertações. Mas, desde então, passaram-se 10 meses e a pressão militar não levou a libertação alguma. Pelo contrário.
Em 1º de setembro, o Hamas assassinou a sangue frio seis jovens reféns – Hersh Goldberg-Polin, Eden Yerushalmi, Ori Danino, Alex Lobanov, Carmel Gat e Almog Sarusi. Foi um banho de água fria na doutrina da “pressão militar”. Ao que tudo indica, os seis reféns foram assassinados justamente porque os terroristas acreditaram que soldados israelenses se aproximavam do cativeiro para resgatá-los.
No podcast israelense “Od Yom”, o negociador David Meidan – que foi o Coordenador de Prisioneiros de Guerra e Pessoas Desaparecidas” do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu na época do soldado Gilad Shalit – deu a sua opinião. Para Meidan, há o ethos israelense, uma espécie de declaração fundadora do país, de que “ninguém fica para trás” nas guerras que o país trava por sua existência. E isso é mais importante que tudo. É a cola que une o país e incentiva jovens a serem combatentes em seu serviço militar. A ideia de que, se foram sequestrados pelo inimigo, o país fará de tudo para que voltem. Vivos, se possível.
“A questão dos sequestrados é a luta do público israelense por sua identidade”, disse David Meidan. “Os valores fundamentais da sociedade estão sendo testados, principalmente depois da tentativa de golpe judicial (de 2023). Somos solidários uns com os outros. Isso está na base do judaísmo: ajudar os que precisam. Não temos o direito de ignorar o sofrimento dos necessitados. Esses são os valores com os quais todos crescemos e fomos educados. É nosso direito viver num país com tais valores e não com valores distorcidos como os que estamos enfrentando agora”.
Meidan começou a lidar com o caso de Gilad Shalit depois que mediadores egípcios e alemães fracassaram. Na época, a pressão pública pela libertação estava aumentando muito – algo parecido com o que acontece hoje, talvez em menor escala (era um soldado, e não 101 pessoas). A diferença é que não havia informação alguma de onde Shalit estava, então não havia como planejar operações de resgate à força. Netanyahu, então, estava inclinado a concordar com uma troca de prisioneiros (ele não sabia que seria criticado por seus seguidores depois do acordo por ter aceitado um preço alto demais, já que o atual líder do Hamas foi um dos 1.027 presos palestinos trocados pelo soldado israelense).
“O preço será sempre desagradável”, considerou David Meidan. “Mas continuo achando que foi a melhor solução, na época. Aqueles que criticam deveriam dizer em voz alta e honestamente que prefeririam ver Gilad Shalit minguando no cativeiro. Mas Shalit era um soldado enviado em nome do exército, em nome do país, não um desertor. No final das contas, é uma discussão de valores. Para mim, a santificação da vida está acima de tudo”.
Ao que tudo indica, apesar da divisão interna, a grande maioria dos israelenses concorda com David Meidan. Segundo pesquisa recente do canal 12 da TV israelense, 60% dos entrevistados são a favor de um acordo de cessar-fogo com o Hamas que leve à volta dos reféns para casa. Só 28% são contra. Só que esses 28% ecoam a única pessoa, em Israel, que realmente tem força para que esse acordo saia: Benjamin Netanyahu. E Netanyahu prefere a tal “pressão militar”, agora sob um novo pretexto: o de que Israel não pode se retirar da Estrada Filadelfi, que marca a fronteira entre Gaza e o Egito. (Observação: mesmo que Netanyahu aceite um acordo, não quer dizer que o Hamas aceitará. É importante lembrar que Netanyahu não é o único a dançar esse tango).
A Estrada Filadelfi é realmente importante porque por lá passa muito contrabando de armas para o Hamas. Mas qualificar o controle israelense dessa estrada como “existencial” para Israel a ponto de ser um obstáculo para um acordo de devolução dos reféns é demais. O que está por trás das desculpas de Netanyahu só ele sabe. Mas aposto que tem cálculo político por trás. Quem sabe ele quer empurrar com a barriga qualquer decisão sobre um cessar-fogo até as eleições americanas, em novembro? Talvez queira esperar para ver se seu colega, Donald Trump, vai vencer.
Netanyahu sabe, como todos, que o preço a pagar pela volta dos reféns – vivos ou mortos – será enorme. Uma organização terrorista sanguinária e fanática como o Hamas não pediria pouco. O Hamas sabe o quanto os israelenses estão sofrendo com tudo isso. Ele conta com esse sofrimento para negociar sua terrível chantagem. Mas, mesmo alto, o preço parece ser menor do que a implosão dos valores internos da sociedade israelense.
Diversos analistas e especialistas alegam que menos presos libertados em negociações com grupos terroristas voltam a cometer terrorismo do que se pensa. E, caso alguns voltem, é sempre possível prendê-los de novo. Certamente há um risco – e o 7 de outubro está aí como prova de que nem sempre as forças de segurança conseguem evitar ataques. Mas qual é a alternativa? Destruir o ethos nacional de um país que nunca deixa ninguém para trás?
Operações militares podem ocasionalmente trazer de volta reféns e salvar vidas. Mas a pressão militar também pode pôr vidas em perigo, como aconteceu no caso dos seis reféns assassinados. Isso sem contar os danos que essa pressão militar tem causado à imagem internacional de Israel, levando a um aumento exponencial no antissemitismo pelo mundo e a um isolamento diplomático sem precedentes. E, claro, a morte de milhares de vidas palestinas, colocadas em risco por seus líderes fanáticos que declaram guerra a Israel. E mesmo que os números de mortos divulgados pelo Hamas sejam certamente exacerbados e não façam distinção entre terroristas e inocentes, o mundo insiste em culpar apenas Israel por tudo.
A ilusória “vitória total” não acontecerá. Mas o Hamas sofreu um duro golpe, mesmo que não tenha desaparecido ou sido deposto em Gaza. Para David Meidan, o lógico, agora, depois de 11 meses de guerra, é “cut the losses”, acabar com o conflito em Gaza (o que levaria à calmaria também no conflito com o Hezbollah, na fronteira Norte), recuperar os reféns, reagrupar forças, realizar trocas na cúpula militar (e política) e começar a curar a sociedade israelense do pior ano da História do país.
Isso tem que acontecer JÁ. A cada segundo que passa, mais vidas de reféns podem ser perdidas. A cada segundo, mais tormento, mais tortura física e psicológica. BRING THEM HOME NOW!
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: Reprodução/WikimediaCommons)