Revital Poleg
Dentro de poucos dias, o povo judeu, em Israel e na diáspora, se reunirá ao redor da mesa do Sêder, lerá a Hagadá de Pessach e celebrará a Festa da Liberdade. No entanto, também neste ano — como no anterior — essa celebração carrega uma dor profunda: cinquenta e nove pessoas ainda seguem em cativeiro na Faixa de Gaza, em condições desumanas, sob constante ameaça à vida, privadas de qualquer contato com o mundo exterior, com suas famílias — e, acima de tudo, da sua liberdade.
Para eles, este Pessach será mais uma lembrança dolorosa e ardente da liberdade que lhes foi tirada pelo terror, e de seu grito silencioso por libertação – exatamente como está escrito na Hagadá de Pessach: “E o seu clamor subiu até Deus” — וַתַּעַל שַׁוְעָתָם אֶל הָאֱלֹהִים — um clamor que nos alcança das profundezas dos túneis do Hamas, ecoando incessantemente pelas vozes de suas famílias, que vivem à sombra de uma dor inconcebível, e pela maioria da sociedade israelense. Enquanto a liberdade desses reféns for negada, também a nossa liberdade, como sociedade, permanecerá incompleta. Enquanto eles estiverem lá, também nós, de certa forma, não somos plenamente livres — בְּנֵי חוֹרִין.
No pensamento judaico, a liberdade não se resume apenas a “liberdade de…”, mas também – e talvez principalmente – a “liberdade para…”. Uma liberdade que implica responsabilidade: responsabilidade pelos “outros” que sofrem e gemem sob o jugo da escravidão ou do cativeiro, e responsabilidade pela reparação do mundo – Tikun Olam, não apenas do indivíduo, nem somente dentro do povo judeu. A liberdade humana não nos concede apenas direitos, mas também – e sobretudo – deveres. Esta é a doutrina da liberdade no judaísmo, e também uma de suas maiores virtudes.
Não se trata apenas de um conceito bíblico ou simbólico: a liberdade é um fundamento moral, pessoal e coletivo, e uma condição essencial para uma existência humana digna.
Nas democracias, liberdade significa a capacidade de pensar, expressar-se, escolher e protestar – sem temor de perseguição, repressão ou punição. Mas a liberdade não é um valor absoluto; ela existe em constante tensão com a necessidade de ordem, de lei e de preservação do espaço público compartilhado.
O filósofo britânico John Stuart Mill afirmou que “a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro” – uma frase que expressa bem que liberdade autêntica não é anarquia, mas sim um equilíbrio delicado entre o individual e o coletivo.
As democracias modernas enfrentam constantemente esse desafio: como manter uma ordem que não seja opressiva, e garantir uma liberdade que não escorregue para a desordem? Esse é o equilíbrio sensível que distingue um governo justo e livre de um regime autoritário disfarçado de ordem.
Infelizmente, processos que rompem esse equilíbrio já ocorreram em países como Hungria, Polônia e Turquia – onde instituições de controle foram enfraquecidas, a liberdade de expressão foi restringida e os freios ao poder do governo foram removidos. Também em Israel, parece que estamos trilhando um caminho perigoso semelhante, e já se percebe uma erosão institucional dos direitos civis e da responsabilidade governamental.
Desde o início do movimento sionista, e à luz da longa história de escravidão e opressão, a liberdade do povo judeu foi destacada como um objetivo supremo – e a liberdade pessoal do indivíduo judeu como um desdobramento natural dessa meta. Isso se deve, em parte, à experiência judaica na Diáspora, antes da fundação do Estado de Israel, que deixou clara a negação da liberdade individual do judeu por causa de sua identidade coletiva – e a constante ameaça às liberdades dos judeus, como indivíduos e como grupo, por parte de forças externas.
Não é por acaso que a palavra “liberdade” aparece nada menos que 13 vezes na Declaração de Independência de Israel, onde está escrito explicitamente:
“O Estado de Israel será fundado nos princípios de liberdade, justiça e paz, conforme as visões dos Profetas de Israel.”
No entanto, desde janeiro de 2023, o Estado de Israel tem vivenciado um processo preocupante e significativo de erosão dos próprios fundamentos da democracia – um processo que se intensificou nos últimos meses: Legislação unilateral, desrespeito vergonhoso ao sistema judiciário, ameaças de não cumprir decisões judiciais vindas do próprio Primeiro-Ministro, tentativas de restringir a liberdade de imprensa, negligência às necessidades das minorias, e aumento da violência contra manifestantes – nada disso é acidental. Trata-se de uma estratégia sistemática voltada à redução do espaço democrático e à transformação da liberdade individual e coletiva em algo condicionado à lealdade política.
A “reforma judicial” não ameaça apenas a independência do Judiciário – ela compromete a capacidade dos cidadãos de se oporem, criticarem e agirem como parte de uma sociedade livre. A escalada da violência policial contra manifestantes, e os discursos inflamados e incitadores do próprio primeiro-ministro contra cidadãos críticos ao governo, são sinais alarmantes da erosão do mais fundamental dos direitos democráticos: o direito à liberdade.
Natan Sharansky, em seu livro “The Case for Democracy: The Power of Freedom to Overcome Tyranny and Terror”, descreve o que ele chama de “O teste da praça pública”: “Se uma pessoa não pode ir ao centro da praça e expressar sua opinião sem medo de prisão, detenção ou violência, então ela vive em uma sociedade de medo – e não em uma sociedade livre.”
Confesso: nunca imaginei que essa definição pudesse, algum dia, ter relevância — mesmo que parcial — para a realidade israelense. Ainda acredito que não chegaremos a um cenário tão sombrio, e que os sinais de erosão das liberdades desaparecerão, à medida que a sociedade israelense — crítica e independente por natureza — consiga rejeitar essas ameaças de forma clara e decidida.
Sim, o verdadeiro teste da liberdade não ocorre quando tudo está confortável – mas sim quando é difícil. Protegeremos a liberdade mesmo quando ela embaraça ou incomoda o governo? Mesmo quando ela exige de nós um preço pessoal? Essa não é uma pergunta simples – e sua resposta cabe a cada um de nós.
O Sêder de Pessach, com a leitura da Hagadá, é construído em torno de uma ideia fundamental: contar a história da saída do Egito e transmiti-la às próximas gerações.
Essa narrativa nos oferece uma oportunidade valiosa para refletir sobre o significado da liberdade – e para educar sobre ela.
“E contarás a teu filho” – “VeHigadta lebincha” – é um chamado à memória, à empatia, e a um compromisso contínuo com a liberdade – para nós, e para todos os seres humanos.
Neste próximo Pessach – a Festa da Liberdade – faremos nossas preces pela libertação imediata de todos os reféns. Mas também ampliaremos nosso clamor: oraremos também pela estabilidade e continuidade da liberdade de todos nós – liberdade de opinião, liberdade de expressão, o primado da lei, o direito de protestar, de questionar e criticar – sem medo.
E lembraremos, com orgulho: A liberdade não é apenas um capítulo na história do povo judeu – ela é parte essencial de quem somos.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
Foto: Flickr/Joshua Bousel