O outro campo de batalha: Democracia, valores e o preço da liderança de Netanyahu

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Revital Poleg

Em tempos de guerra, ou quando se vive sob uma ameaça real à segurança, é comum pensar que colocar considerações morais diante de dilemas políticos e de segurança gera um conflito estrutural – talvez até uma contradição inevitável – entre uma visão humanista e baseada em valores e a dura realidade no terreno. A sensação, por vezes movida por uma reação instintiva ou emocional, é que, em momentos em que vidas humanas, interesses nacionais ou a segurança da população estão em risco, não há espaço para um discurso moral – ou que este seria, na verdade, um luxo irrelevante diante da gravidade da situação.

No entanto, é justamente em situações como essas, quando a tentação de justificar quase qualquer ação em nome da defesa ou da sobrevivência se intensifica, que se põe à prova, em sua essência, a capacidade de uma sociedade de preservar sua espinha dorsal ética e a conexão entre identidade nacional e responsabilidade moral. Por sua natureza, trata-se de um dilema que caracteriza especialmente países e sociedades democráticas e liberais – grupo no qual Israel se insere.

Não há dúvida quanto ao direito de Israel à autodefesa. Trata-se de um direito fundamental de qualquer Estado soberano, consagrado em convenções internacionais e na Carta das Nações Unidas – e que acompanhou Israel ao longo de toda a sua existência, sempre que se viu diante de uma ameaça concreta ou sob ataque militar. Isso é ainda mais verdadeiro em resposta ao horrendo massacre de 7 de outubro – a tragédia mais grave enfrentada por Israel desde o Holocausto – que justificou uma reação firme e determinada do país.

A imensa maioria da comunidade internacional, com os Estados Unidos e a maioria dos países da Europa à frente expressou desde o início apoio inequívoco ao direito de Israel de se defender. Esse apoio se manifestou em declarações oficiais, visitas de solidariedade de líderes, fortes condenações aos crimes do Hamas e reiterados apelos pela libertação dos reféns. Desde o início, ficou evidente que Israel enfrentava uma campanha militar extremamente complexa, não apenas pelas proporções do horror que surpreenderam completamente Israel, e pela necessidade de uma mobilização imediata, conduzida com agilidade e determinação pelas Forças de Defesa de Israel e demais órgãos de segurança, mas principalmente pelo fato de que a guerra se desenrola no coração de uma população civil, usada cinicamente pelo Hamas como escudo humano.

Mas já se passaram dezenove meses, a guerra continua, e seu fim – ao que tudo indica, enquanto depender de Benjamin Netanyahu – ainda não está à vista. Isso apesar de muitos analistas militares israelenses questionarem abertamente a necessidade da guerra e a eficácia da pressão militar na libertação dos 58 reféns que ainda definham nos túneis do Hamas. 

Em paralelo, assistimos ao aumento da pressão dos Estados Unidos para resolver com urgência a crise humanitária em Gaza – uma crise que, sem dúvida, precisa ser solucionada imediatamente – e à ameaça de países da União Europeia de “reavaliar” o compromisso de Israel com o acordo-base que rege suas relações com o bloco, o qual exige respeito a princípios democráticos e aos direitos humanos.

Embora, à primeira vista, o presidente Trump pareça oferecer a Israel certa margem de manobra, Israel não pode se dar ao luxo de se apoiar exclusivamente nisso. O que está claro é que, caso o governo continue a levar ao limite as normas de conduta consagradas no cenário internacional – normas que Israel historicamente sempre respeitou – aprofundará ainda mais o dano político e estratégico ao país, e intensificará sua tendência ao isolamento.

O quadro, infelizmente, é ainda mais complexo. Enquanto Israel enfrenta uma guerra que, conforme declarou Netanyahu logo no início, duraria “até a vitória total” – uma definição que, na prática, não passa de um slogan político vazio de conteúdo estratégico -, torna-se cada vez mais evidente para a sociedade israelense que, enquanto nossos filhos arriscam suas vidas nas diversas frentes, Netanyahu está quase exclusivamente empenhado em se isentar de qualquer responsabilidade pelos eventos de 7 de outubro; e em garantir sua própria sobrevivência política e a do seu governo de extrema-direita.

A maioria esmagadora da população israelense – entre 65% e 70% – apoia o fim da guerra e a devolução imediata de todos os reféns, como demonstram todas as pesquisas publicadas por diferentes veículos de comunicação. Diante desse quadro, as ações de Netanyahu colocam os cidadãos diante de uma realidade sem precedentes, que ameaça valores fundamentais que sempre fizeram parte indiscutível do consenso nacional – entre eles, os princípios que regem as Forças de Defesa de Israel, seu código de ética, e os pilares democráticos sobre os quais o Estado de Israel foi fundado.

Na conferência da Ordem dos Advogados de Israel, realizada em Eilat no dia 26 de maio, a Procuradora-Geral de Israel, Gali Baharav-Miara, alertou para uma possível mudança acelerada do regime sob o qual vivemos: “Sob o pretexto da guerra, o processo de mudança de regime se acelerou muito. Não é um alerta sobre o futuro — é o retrato da realidade atual… Há um enfraquecimento central das instituições democráticas, e especialmente preocupante é o ataque contínuo ao Poder Judiciário. Os primeiros a serem prejudicados serão os próprios cidadãos.”

De fato, é crescente a sensação, em amplos setores da população, de que Netanyahu abriu mais uma frente de conflito: desta vez interna, contra todos os cidadãos que não fazem parte de sua base de apoio. Essa sensação se aprofunda a cada dia.

Tristemente, essa percepção de alienação e radicalização transmitida por Netanyahu está se intensificando. Um exemplo claro disso foi a coletiva de imprensa que ele convocou em 21 de maio — após seis meses evitando completamente responder a perguntas de jornalistas, e mais de quatro anos de boicote aos principais meios de comunicação israelenses, com exceção do Canal 14, seu principal “porta-voz político”. 

O evento era praticamente voltado ao seu núcleo de apoio mais fiel e cristalizou o padrão de conduta de Netanyahu: teorias da conspiração, meias-verdades – ou até menos que isso – aprofundando, de forma consciente, o racha interno no seio da sociedade israelense.

O momento mais marcante foi quando comparou os combatentes da força de elite Nukhba, do Hamas – armados e treinados com recursos do Catar, cuja transferência ao grupo terrorista foi autorizada durante anos por ele mesmo – a “moleques de chinelos”, numa fala interpretada pelo público, como um insulto direto ao heroísmo dos soldados que arriscaram suas vidas nos combates daquele dia, aos civis assassinados ou sequestrados, e aos membros das equipes de resposta rápida que enfrentaram o massacre com coragem admirável.

Aparentemente, o primeiro-ministro tem motivos para se preocupar. Todas as pesquisas realizadas desde o início da guerra apontam para uma queda dramática em seu apoio eleitoral: a coalizão atual gira em torno de 45 a 48 cadeiras na Knesset, parlamento israelense, enquanto a oposição chega a um número entre 62 e 65 – e, em alguns levantamentos, até mais. O verdadeiro teste, é claro, será nas urnas, nas eleições previstas para outubro de 2026. 

Mas será que elas realmente acontecerão? 

Na já mencionada coletiva de imprensa, o primeiro-ministro se recusou a responder à pergunta feita pelo Canal 12: “O que acontecerá se a guerra ainda estiver em curso no período das eleições? O senhor irá adiá-las?”. Seu silêncio retumbante deixou no ar uma inquietante interrogação. O que isso significa? O tempo dirá.

Diante de tudo isso, é fundamental – talvez mais do que nunca – esclarecer: embora o governo de Netanyahu exerça o poder de forma legítima, há muito tempo ele não representa a maioria dos cidadãos de Israel.

A sociedade israelense é diversa, crítica e pautada por valores. Um número significativo de seus integrantes se opõe veementemente às políticas do governo atual. Muitos clamam pelo fim imediato da guerra, pelo retorno dos reféns, por uma solução política para Gaza, pelo fim do controle sobre outro povo, por responsabilidade moral e por fidelidade à democracia e aos seus princípios. Sabem que o desafio à segurança é real – mas acreditam que, mesmo em meio a uma luta existencial, não se pode perder a bússola moral. Ela é parte inseparável não apenas do ethos político sobre o qual o Estado de Israel foi fundado, mas também – e talvez acima de tudo – do próprio ethos judaico.

Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.

(Foto: Flickr/World Economic Forum)

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