Por que Lapid defendeu a solução de “dois Estados” em seu discurso na ONU?

Daniela Kresch

TEL AVIV – O discurso do primeiro-ministro Yair Lapid na Assembleia Geral da ONU deste ano deu o que falar. Em seus pouco mais de 20 minutos de fala, na quinta-feira, 22 de setembro, Lapid tocou em muitos assuntos considerados lugar comum: a ameaça nuclear iraniana, a inovação da Start-Up Nation, o desenvolvimento do país de só 73 anos, a necessidade de segurança apesar do anseio pela paz com o mundo árabe e etc.

Mas Lapid verbalizou uma expressão que há pelo menos cinco anos não era dita por um líder israelense na ONU: “A solução de dois Estados para dois povos” – que imediatamente se tornou a manchete de todos os sites e jornais. A direita israelense ficou de cabelo em pé, incluindo o “primeiro-ministro alternativo” Naftali Bennett, que, teoricamente, continua na cúpula da liderança da coalizão de governo mesmo que, na prática, já tenha anunciado que vai deixar a vida pública – pelo menos por algum tempo.

Eis o que disse Lapid:

“Um acordo com os palestinos, baseado em dois Estados para dois povos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro de nossos filhos. A paz não é um compromisso. É a decisão mais corajosa que podemos tomar. A paz não é fraqueza. Ela incorpora em si todo o poder do espírito humano. A guerra é a rendição a tudo o que há de ruim dentro de nós”.

“Apesar de todos os obstáculos, ainda hoje a grande maioria dos israelenses apoia a visão dessa solução de dois Estados. Eu sou um deles”, continuou Lapid. “Temos apenas uma condição: que um futuro Estado palestino seja pacífico. Que não se torne outra base terrorista para ameaçar o bem-estar e a própria existência de Israel”.

O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, em seu discurso na ONU no dia seguinte, agradeceu a Lapid pelo que ele disse, mesmo afirmando que se trata apenas de retórica. A esquerda israelense adorou e, claro, a direita, odiou. Em uma mensagem pré-gravada publicada logo após Lapid começar a falar (quer dizer, antes mesmo de ouvir o discurso), Netanyahu chamou a fala de “um discurso cheio de fraqueza, derrota e inclinação de cabeça”:

“Depois que o governo de direita liderado por mim removeu o Estado palestino da agenda mundial, depois que trouxemos quatro acordos de paz históricos com países árabes que contornaram o veto palestino, Lapid está trazendo os palestinos de volta à vanguarda do cenário mundial e colocando Israel para dentro do buraco palestino”, disse Netanyahu.

A ministra do Interior, Ayelet Shaked, disse que se trata de “apenas um golpe eleitoral sem sentido”: “Nunca permitiremos a criação de um estado terrorista palestino no coração da Terra de Israel”. Outros baluartes da direita, como Avigdor Lieberman e o líder do partido religioso sionista, Betzalel Smotrich, de extrema-direita, alertaram para “um retorno aos dias amaldiçoados de Oslo”.

Na esquerda, apesar da simpatia, há quem não acredite que as palavras não passam de retórica. O parlamentar do Meretz, Yair Golan, chamou as declarações de Lapid de “uma cortina de fumaça para a inação e evasão de responsabilidade”: “Todos os dias nós, como país, não tomamos a iniciativa de separação (dos palestinos). Uma nação forte deve tomar decisões. Uma liderança corajosa deve tomar decisões”.

Certamente foi um risco político para Lapid, a 40 dias das eleições de número 5 desde março de 2019. Mas por que ele decidiu dizer o que disse? Vou tentar explicar.

Até Ariel Sharon – ícone da direita, apesar de seus últimos anos mais próximos ao centro – disse que era a favor de dois Estados. Até Netanyahu, que mais tempo foi premiê de Israel (16 anos), falou várias vezes sobre isso dentro e fora de Israel, incluindo na ONU. Mas a última vez que ele tocou no assunto foi em 2016. Na época, quem estava na Casa Branca era o ex-presidente democrata Barack Obama. E provavelmente era isso que Obama queria ouvir. Netanyahu, bem como todos os líderes israelenses, sempre pensa em como Washington vai reagir.

Mas assim que Obama foi substituído pelo republicano Donald Trump, o presidente americano com maior sinergia com a direita israelense, tudo mudou. Netanyahu parou de falar do assunto, como se não existisse mais. Como se a ideia de criar por aqui dois Estados – ideia da própria ONU imortalizada pela Partilha da Palestina, em 1947, na sessão presidida pelo brasileiro Osvaldo Aranha – tivesse se tornado obsoleta ou algo totalmente do passado. Mas a ideia não é obsoleta. A Comunidade Internacional ainda acredita nela, apesar do wishful thinking da direita israelense.

A sintonia Bibi-Trump parecia ter enterrado para sempre a ideia de negociar qualquer acordo com a liderança palestina. Trump cortou, aliás, a ligação da Casa Branca com a AP. Só falava com Israel. Transferiu a embaixada americana para Jerusalém e tudo mais que sabemos. E a ideia de criação de um Estado palestino do lado de Israel – a solução de “dois Estados para dois povos” nesta terra (o ex-mandato britânico na Palestina histórica) – parecia ter ido para as cucuias.

Mas, em 2019, a política israelense entrou em turbulência, numa espiral de eleições e mais eleições. Netanyahu perdeu o trono no pleito de 2021 e, há 1 ano e meio, já não é o premiê (pode ser que volte a ser depois de 1° de novembro, nas próximas eleições, mas ainda é da oposição). Em seu lugar, uma coalizão “anti-Bibi” está no poder desde então. Uma coalizão com oito partidos distintos: de centro, de esquerda e de direita (incluindo um partido árabe-israelenses).

Essa coalizão encerrará seu governo em breve, mas ela ainda existe. Ela é heterogênea e suas lideranças sabem que só puderam se manter unidas porque não discutiram assuntos profundos e ideológicos, principalmente a questão palestina. Então, a expressão “dois Estados para dois povos” foi mantida de fora de discursos por todo esse tempo, mesmo que partidos de esquerda e centro-esquerda – que acreditam nela – sejam parte da coalizão.

No ano passado, em 2021, quem discursou na ONU foi o então primeiro-ministro Naftali Bennett, que divide com Yair Lapid a liderança da coalizão. Lapid era, então, o “premiê alternativo”. Agora é Bennett o “premiê alternativo” e Lapid está no comando. Se Bennett – um baluarte da direita israelense – sempre foi contrário à criação de um Estado palestino, Lapid é outra história. Ele é de centro-esquerda, liberal, pró LGBT, pró Estado palestino.

E, como o governo de coalizão vai terminar em breve, Lapid se sentiu à vontade para dizer o que realmente pensa na ONU. Ele, na verdade, não tem nada a perder – ao meu ver. Não vai conseguir novos eleitores de direita. Mas talvez consiga votos de quem está em cima do muro entre votar nele ou no ministro da Defesa Benny Gantz. Gantz está unido, nessa campanha eleitoral, com outro direitista-raiz, Guideon Saar (ex-Likud). Então, se o eleitor precisava lembrar que o voto em Lapid é um voto mais à esquerda, agora se lembrou.

Lapid também jogou para a plateia internacional e, principalmente, tentou acalmar os palestinos em meio a mais uma rodada de turbulência na Cisjordânia. Há meses, há cada dia mais confrontos entre soldados israelenses e palestinos, incluindo uma escalada no número de ataques terroristas contra civis israelenses dentro de Israel (não só na Cisjordânia). Com essas palavras, talvez consiga mandar uma mensagem, mesmo que fraca, de que a questão palestina ainda é importante.

E, enfim, Lapid tentou ditar o tom da campanha para os próximos 40 dias. Animar sua base, tentar fazer com que os árabes-israelenses saiam de casa para votar (o que pode ajudar o bloco de esquerda e bloquear a volta de Netanyahu ao poder).

Tudo isso explica a decisão de Lapid em falar de “dois Estados para dois povos”. Mas, pensando bem, foi algo tão banal, que tanta gente já falou, no passado, que chega a ser engraçado ver a reação “over” dramática de políticos e jornalistas a isso. Sinal de que estão todos nervosos, ansiosos e um tanto perdidos depois de 3 anos e meio de caos político em Israel.

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