Milhares de desertores haredim vão para a cadeia?

Daniela Kresch

TEL AVIV – Desde 1º de julho de 2023 – data que acabou de passar –, todos os jovens judeus israelenses de 18 anos devem se alistar no exército. Pode parecer óbvio. Afinal, todos sabem que o serviço militar, em Israel, é obrigatório para homens e mulheres de 18 anos deste a criação do país, em 1948, certo? Não. A história é diferente e cada vez mais complicada.

Na prática, jovens judeus ultraortodoxos (haredim, em hebraico) nem sempre se alistam. Quase nunca, na verdade. E isso enlouquece as famílias de jovens que mandam suas filhas e seus filhos para o exército sob o risco de não os receber de volta. Não há o que eles chamam de “Shivion Ba-Netel” (um fardo igual) para todos os jovens, que arriscam suas vidas nas Forças de Defesa de Israel (FDI).

O que significa a data de 1º de julho de 2023 e o que vai acontecer com os jovens ultraortodoxos? Será que a polícia israelense vai sair por aí prendendo milhares de haredim “desertores” pelo país? E mais: como o atual governo Benjamin Netanyahu, o mais direitista e religioso da História de Israel, deixou expirar a lei que isenta os jovens haredim de se alistarem quando precisa desesperadamente do apoio dos eleitores haredim?

Sempre houve exceções no alistamento de jovens judeus. Mulheres grávidas, casadas ou que se dizem religiosas (entre elas, mulheres ultraortodoxas), quem tem problemas médicos ou psicológicos, quem tem antecedentes criminais graves, entre outros casos, não precisam se apresentar aos militares. Mas o que causa polêmica é o não alistamento de meninos saudáveis elegíveis. O problema são tentativas dos ultraortodoxos de evitar o alistamento de seus homens, que data da época do primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben Gurion. 

Quando Israel estava em seus primeiros anos, Ben Gurion aceitou fazer um acordo com os poucos ultraortodoxos que moravam no país. Os jovens que estudassem em yeshivot (internatos rabínicos) não precisariam se alistar caso estudassem os textos bíblicos (a Torá e outros textos judaicos). O nome do acordo era “Torató Omanutó” (em tradução livre: “Estudo da Torá como profissão”).

Para esses judeus extremamente religiosos, estudar a Torá o dia todo é uma carreira e é mais importante do que pegar em armas. Afinal, é Deus que protege os judeus. Mais do que qualquer soldado. Por exemplo, em 1991, na época da 1ª Guerra do Golfo, folhetos espalhados por cidades e bairros ultraortodoxos diziam “Tehillim neged Tilim” (“Salmos contra mísseis”). Quer dizer: para evitar ataques contra Israel bastava rezar.

Ben Gurion não achou que seria um problema aceitar essa exceção. Ela acreditava que era importante aceitar e respeitar todos os tipos de judeus como parte do recém-formado Estado de Israel. O que ele não tinha ideia é que o número de ultraortodoxos no país iria crescer exponencialmente. Hoje, eles são cerca de 13% da população do país, com expectativa de alcançar 25% em 2048, quando Israel completar 100 anos.

Se, em 1948, os estudantes de yeshivá eram 400, hoje são dezenas de milhares. Mais de 15% dos soldados de 18 anos ou mais não se alistam sob a égide do “Torató Omanutó”. Na década de 1990, o Supremo Tribunal de Justiça de Israel decidiu que o acordo de Ben Gurion não era “constitucional” por causa da Lei Básica israelense que determina igualdade entre os cidadãos de Israel – igualdade entre os jovens que põem suas vidas em risco e os que não o fazem. Mas o Supremo adiou a aplicação da decisão para dar tempo ao governo para resolver o assunto.

Aí começa a lista de “soluções” que não deram certo nos últimos 23 anos. Primeiro, houve um comitê (o Comitê Tal), que fez recomendações em 2000 sobre um novo acordo. A Lei Tal, como ficou conhecida, foi aprovada pelo Knesset em 2002. Ela previa a continuação do arranjo “Torató Umanutó” sob condições específicas. Mas não acabou com a polêmica.

Em 2005, a então ministra da Justiça, Tzipi Livni, afirmou que a Lei Tal, que até então ainda não havia sido totalmente implementada, não fornecia uma solução adequada para o problema do recrutamento de haredim. Só 1.115 dos 41.450 alunos de yeshivot se apresentaram para o “ano de decisão” previsto na lei (período em que os haredim seriam expostos ao exército para decidirem pelo alistamento) e só 31 deles se alistaram posteriormente. Um número irrisório que tornou a lei totalmente ineficaz.

Em 2007, a Lei Tal foi prorrogada até agosto de 2012. Em janeiro de 2012, a Suprema Corte decidiu que ela era inconstitucional. Foi formado outro comitê, o Plesner, para formular uma nova solução, mas não conseguiu e foi dissolvido.

Uma nova lei, aprovada em 2014 e alterada em 2015, estabeleceu cotas de recrutas haredim para o exército e sancionou yeshivot que não atendem a essas cotas. Mas, novamente, em setembro de 2017, o Supremo considerou o projeto de lei inconstitucional, uma vez que a isenção concedida foi considerada muito abrangente e as cotas nunca foram realmente respeitadas pelas yeshivot.

O Supremo deu ao Knesset um ano – até 2018 – para alterar o projeto de lei, mas isso foi adiado 15 vezes devido às eleições recorrentes de 2019 a 2022. O último adiamento expirou em 30 de junho de 2023 – sexta-feira passada.

Para evitar um caos no governo, já em turbulência por causa dos protestos contra a reforma judicial, a violência na Cisjordânia e outros assuntos, o gabinete da coalizão de governo aprovou, em 16 de junho, às pressas, a promessa de que irá formular um novo projeto de lei de recrutamento haredi até 31 de março de 2024. Até lá, o exército não recrutaria jovens haredim elegíveis.

Nesse “período intermediário” entre a expiração da lei atual até a aprovação da nova lei, o governo “instrui o ministro da Defesa” a não tomar medidas para recrutar homens haredi elegíveis, desde que “apresentem perante as autoridades aprovações de seus estudos em uma yeshivá com base nas necessidades e exigências do exército”. Quer dizer: o exército não emitiria cartas de alistamentos para os homens haredim, o que evitaria que fossem considerados “desertores” e presos.

Mas isso não deve ser o fim da questão, nem temporariamente. O Movimento para o Governo de Qualidade em Israel já enviou uma ação ao Supremo exigindo que o exército inicie o processo de alistamento de todos os homens haredim elegíveis em 1º de julho.

Mesmo que a decisão do governo de impedir o alistamento até a formulação da nova lei consiga sobreviver, a ideia da nova lei seria isentar a grande maioria dos jovens haredim e, em troca, dar um “prêmio” aos jovens israelenses que são alistados. Os soldados ganhariam muitos benefícios, incluindo um soldo muito mais alto, para “expressar gratidão por seu serviço e reduzir a desigualdade no serviço”.

Mas essa nova lei, que nem foi formulada ainda, não deve colocar um fim às divergências. Ela significaria, na prática, a transformação do exército israelense de um “exército do povo” em um “exército profissional”, remunerando os soldados que se alistarem e isentando uma parte enorme dos jovens elegíveis. E isso fere o status nacional, a cultura nacional tão intrínseca a Israel, de que todos os judeus de Israel estão unidos no sofrimento, nos deveres, no arriscar a vida para a defesa do país. Sem isso, seria como tirar o tapete do ethos nacional.

Esse assunto do alistamento de ultraortodoxos é um dos mais polêmicos e interessantes da História de Israel. De algo que, no começo, foi uma espécie de “favor” feito por Ben Gurion para respeitar os judeus mais religiosos, se tornou a principal exigência dos partidos ultraortodoxos, que usam o poder numérico – e a lealdade – de seus eleitores para pressionar governos a isentar seus jovens do serviço militar. Para eles, o exército é não só menos importante para a segurança nacional do que preces como é um perigo para a juventude. No exército há mulheres, há seculares, há ideias diferentes… E os líderes haredim querem que seus jovens vivam na bolha haredi e não saiam dela.

Será que Israel sobreviverá a essa visão religiosa quando os haredim foram 25% da população em 1948? E depois disso? Perguntas que não querem calar. E não vão se calar.

Foto: Flickr/IDF

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