Yom Kippur 2023: A guerra cultural religiosa-secular

Revital Poleg

O recente Yom Kippur foi emocionalmente carregado, mesmo antes de começar, pois marcou o 50º aniversário da Guerra do Yom Kippur (1973), cujas memórias e dor ainda são tangíveis para muitos. Mas, ninguém imaginava que esse dia, e especialmente neste ano, se tornaria ponto de partida de uma nova guerra, que não é menos – e talvez até mais – perigosa e penosa para nós. Foi o dia em que de fato estourou em Israel uma guerra religiosa e cultural, entre partes da própria nação.

Vamos nos lembrar o que aconteceu nesse recente Yom Kippur, como se tornou possível e para onde isso nos leva.

Em 2018, o município de Tel Aviv emitiu uma diretriz segundo a qual nenhuma atividade que cria separação de gênero pode ser realizada no espaço público. Na época do coronavírus, e devido ao fechamento das sinagogas naquele período, o município aprovou a realização de rezas no espaço público. Essa atividade continuou mesmo depois do fim da epidemia, sem segregação de gênero, conforme as diretrizes do município.

Em preparação para o recente Yom Kippur, a ONG “Rosh Yehudi” (Cabeça Judaica) e outras organizações religiosas solicitaram a realização de orações na Praça Dizengoff e em outros locais centrais em Tel Aviv. A prefeitura autorizou o pedido, mas ressaltou a proibição de estabelecer separação física entre homens e mulheres. A organização apresentou uma petição à Suprema Corte contra a decisão da prefeitura, que foi rejeitada pelo tribunal. No entanto, na véspera do Yom Kippur, os membros da “Rosh Yehudi” chegaram à Praça Dizengoff, trazendo consigo cercas de metal para formar a divisória, embrulhando-as com bandeiras de Israel e alegando que não constituem separação de acordo com a decisão da Suprema Corte. Apesar da violação da lei, a polícia se absteve de desmontar as cercas.

No início do jejum e da reza “Kol Nidrei”, que abre o Yom Kippur, centenas de pessoas que se opunham à segregação vieram rezar na praça. Elas confrontaram os membros do Rosh Yehudi, que acabaram deixando o local. O mesmo aconteceu em outros locais de Tel Aviv, onde os membros da ONG tentaram realizar uma oração com separação. Dentro de pouco tempo, os ânimos entre as partes se acirraram e surgiram conflitos entre eles. No dia seguinte, próximo ao fim do jejum, outras manifestações ocorreram em Tel Aviv e em vários lugares de Israel, contra eventos de oração separados. Após essa situação, a Prefeitura de Tel Aviv cancelou todas as permissões já concedidas a essa organização para realizar eventos no espaço público.

Essas cenas de confrontos entre os fiéis do dia mais sagrado para o judaísmo jamais foram vistas e constituem uma linha divisória significativa na sociedade israelense, cujo resultado é ainda difícil de prever. Tais eventos fizeram muitos em Israel a se contorcer nas cadeiras, diz o Prof. Eliyahu Berkovitch, do Israel Democracy Institute. O dia que mais simbolizou o delicado status quo interno entre o “israelense” e o “judeu”, não apenas entre os diferentes grupos da sociedade, mas também na psique dos que não frequentam a sinagoga todos os dias, mas que no Yom Kippur participam normalmente nas rezas de “Kol Nadri” ou “Ne’ila”. Estes se tornaram vítimas da grave brecha criada entre a essência “judaica” e a “democrática” do Estado de Israel desde o início da reforma jurídica de Netanyahu.

“Rosh Yehudi”, a organização que iniciou e liderou a provocação no Yom Kippur em Tel Aviv, no coração do espaço público comum a todos, é uma organização ultranacionalista que é parcialmente financiada pelo Estado. A organização define-se como um centro de autoconsciência no coração de Tel Aviv, que oferece conteúdo, inspiração e experiência ao público jovem interessado em se aprofundar e aprender sobre sua identidade judaica. Isso é semelhante a muitos outros “núcleos da Torá” do sionismo religioso, que foram criados ao longo dos anos em cidades seculares e mistas, com o objetivo de fortalecer o apego ao judaísmo ortodoxo entre os seculares.

Esta atividade polêmica se tornou um movimento cada vez maior, que está trabalhando para tornar religiosos os seculares e erradicar tudo o que não está de acordo com seu conceito messiânico – religioso – judeu. Usando técnicas de propaganda, diversas atividades e ferramentas, eles atraem o público curioso, incentivando a desigualdade de gênero, humilhando pessoas LGBT e rejeitando completamente tudo o que foi construído e estabelecido no Israel democrático e liberal ao longo de 75 anos. Os representantes desse movimento, que sempre esteve à margem da sociedade israelense, fazem agora parte central do governo de Netanyahu.

Dez meses após a ascensão ao poder do governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu e o lançamento da revolução jurídica, está cada dia mais claro que se trata de um passo que vai muito além do aspecto legal, que atinge todas as áreas de nossas vidas, atropelando tudo o que conectava e unia as partes desta nação, apesar da grande diversidade que sempre existiu nela. Os eventos do Yom Kippur tiraram o “gênio religioso” da garrafa. Não se trata apenas de um conflito entre o modo de vida secular e o religioso, mas de uma erupção muito mais profunda.

Infelizmente, o governo atual fez todo o possível para criar “sangue ruim” entre os setores secular e religioso, e destruir a delicada textura que os unia. A revolução jurídica é apenas uma parte de uma série de ações ultrajantes que o governo tomou: a transferência de orçamentos sem precedentes para organizações religiosas e ultraortodoxas sem garantir orçamentos equivalentes a todos, a garantia de uma isenção total do alistamento militar para os estudantes de Yeshiva, o fortalecimento dos tribunais rabínicos e do rabinato principal, e a constante perseguição a grupos da população que constituem o núcleo central da sociedade israelense, que contribuem para a vida econômica, a segurança e a cultura de Israel. Tudo isso despertou o campo liberal de seu sono e alimentou o movimento de protesto, como nunca visto na história da sociedade israelense.

O primeiro-ministro, como de costume, não perdeu a oportunidade de atacar os manifestantes e incitá-los, dizendo: “Para nossa surpresa, especificamente no Estado judeu, no dia mais sagrado para o povo judeu, manifestantes de esquerda se revoltaram contra os judeus durante suas orações”. Com essas palavras, ele criou uma separação entre os “manifestantes de esquerda” e os judeus que estavam rezando, dando a impressão de que, a seu ver, os manifestantes não são judeus. As duras reações que suas palavras provocaram no público, inclusive entre os líderes da oposição, levaram-no mais tarde, e como sempre, a “reformular suas palavras”. Porém, isso foi pouco e tarde demais, pois o dano já foi causado.

Os recentes eventos do Yom Kippur são apenas o início de um novo capítulo na crescente divisão na sociedade israelense que desperta ressentimentos entre todos os setores do público. Segundo o Prof. Amichai Cohen, do Israel Democracy Institute, muitos do setor moderado do sionismo religioso (inclusive o próprio Cohen) simpatizam com a luta liberal contra a revolução jurídica e participam ativamente nela. Eles não desejam viver em um país no qual o público secular e liberal não gostaria de viver. O número de apoiadores dessas posturas liberais está crescendo. Eles não têm simpatia alguma por organizações como “Rosh Iehudi” e, a seu ver, é muito bom que o público liberal israelense tenha despertado e demonstrado sua consciência sobre princípios importantes, tal como a igualdade das mulheres. Porém, prejudicar grande parte do público tradicional moderado israelense pode ter sérias consequências sobre a luta contra a revolução jurídica. Para esse público, é muito difícil aceitar a violação da oração, por qualquer razão, conforme aconteceu de fato no Yom Kippur. 

Caso a luta contra a revolução se transforme em um conflito cultural total, tais grupos se verão forçados a fazer uma trágica escolha entre sua posição relacionada à democracia e à sua identidade religiosa, o que pode prejudicar o sucesso da luta inteira.

Ao contrário das guerras culturais sobre as quais aprendemos da história, que acontecem entre culturas antagônicas, a batalha em Israel é travada dentro de uma cultura única que se baseia em duas pedras fundamentais – a democracia-liberal, por um lado, e a judaica tradicional, por outro. A identidade israelense dos membros do movimento de protesto que agora estão lutando com toda a força pelos valores liberais abrange também um componente judaico tradicional, que faz parte de quem cada um de nós é, além do nacional.

Abrir mão dele significaria um terrível corte da parte essencial de nosso ser. Acredito que a maioria dos manifestantes não deseja isso. Muito pelo contrário, gostariam de manter conexão com a tradição e com o judaísmo como cultura, coisa tão natural para grande parte do público israelense judeu. Será que isso é possível? Em momentos de extremismo como o atual, ambos os lados tendem a agarrar-se ao núcleo de sua posição, que é mais radical do que aquele com o qual estariam dispostos a conviver em dias “mais tranquilos”.

A luta atual que está acontecendo em Israel se intensificou em Yom Kippur, revelando os pontos sensíveis das questões essenciais que já existiam antes, mas foram deixadas de lado, às vezes por necessidade e às vezes conscientemente e de modo considerável. É um momento de verdade para nós e ainda não está claro onde tudo isso vai parar. 

Será que vamos encontrar o rumo? Para tanto, também é necessário ter uma liderança empoderadora e positiva. Não é isso o que temos hoje. Mesmo assim, vou concluir com as palavras de nosso hino “Hatikva – A Esperança” dizendo: “Nossa esperança não se perderá”.

Foto: Reprodução/Twitter @nomoredonkey

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