Carta aberta em prol da sensatez e da mesura

Quem lê as opiniões e análises sobre a guerra entre Israel e o Hamas publicadas nos últimos dias (algumas delas com vontade de ser análises, mas aberta e simplesmente opiniões já lidas milhares de vezes cada vez que o frágil equilíbrio entre israelenses e palestinos se quebra) tem a impressão de estar assistindo a uma contenda entre duas torcidas de futebol.  Estão os que torcem incondicionalmente para uma das equipes, o Hamas ou os palestinos ou ambos, nunca fica totalmente claro; e os que torcem incondicionalmente para a outra equipe: o Estado de Israel. Essa realidade revela algumas características nada louváveis para quem, no fundo, quer transmitir uma análise séria e argumentada de um conflito que dura décadas e que já matou dezenas de milhares de pessoas. Pessoas.  

A jornalista Or-ly Barlev divulgou recentemente um vídeo de uma jovem de 19 anos, do Kibutz Be’eri, sobrevivente do massacre perpetrado pelo Hamas no sul de Israel,  ainda aterrorizada pelos acontecimentos sangrentos; um vídeo assertivo, incrivelmente honesto, amargo, cheio de raiva e dor, mas sem um ápice de desejo de vingança. Ao contrário, a jovem deixa claro que a vingança, isto é, bombardeios indiscriminados em Gaza não são a solução, nem para os israelenses, nem, obviamente, para os palestinos.  Bombardear Gaza, além de inumano, é contraproducente para um acordo de paz entre palestinos e israelenses, única solução para acabar com a ocupação israelense e suas nefastas consequências e com os atentados terroristas perpetrados pelo Hamas.

O relato da jovem sobrevivente além de comovente, porque sempre é comovente ouvir esse tipo de mensagem dos lábios de uma vítima, é extremamente importante, do mesmo modo que são importantes os artigos escritos por David Grossman, Yuval Noah Harari, e os artigos e as ações de dezenas de ONGs israelenses que ainda lutam pela paz e que clamam por uma solução negociada entre palestinos e israelenses para colocar um ponto final neste longo ciclo de derramamento de sangue.

Esses israelenses e muitos outros judeus na diáspora condenaram e condenam o horror – e com horror – os bombardeios indiscriminados em Gaza, convencidos de que a paz só se alcançará através de um acordo político.

Cabe então, àqueles que continuam torcendo por uma das equipes com slogans tão velhos como velho é o conflito (e que atire a primeira pedra quem pensa que algum conflito armado desembocou num armistício pelos slogans de torcedores confortavelmente sentados em seus escritórios a milhares de kms das balas!), começar a se fazer perguntas.  Começar a enxergar uma realidade extremamente complexa como aquilo que ela é, não como se fosse uma fábula para crianças onde fica muito claro quem são os maus e quem são os bons.  

Eu começaria perguntando: por que o conflito entre israelenses e palestinos dura tanto tempo?  Quais são  os interesses que estão em jogo?  E de quem são esses interesses?  Qual é o papel do Egito, da Síria e da Jordânia, três países árabes que fazem fronteira com Israel?  E qual é o papel dos países árabes que não fazem fronteira com Israel, como Iraque,  Arábia Saudita, Iêmen e tantos outros?  E países muçulmanos como  o Irã, o Afeganistão e a Turquia, que interesses têm no conflito? E países mais longínquos como a Rússia? Será que o conflito entre israelenses e palestinos se restringe a esses dois atores ou é parte de uma agenda complexa, na qual há muitas variáveis, algumas das quais fazem interseção com as outras?  Acredito que se a situação grave na qual vivem os palestinos fosse tão importante para os países árabes, países ricos e com grande poder de barganha no cenário internacional – ao final de contas, os palestinos são árabes – esse conflito teria acabado há muito tempo. 

Quem pensa que os palestinos são vítimas de Israel, só de Israel, deveria, por respeito às vítimas de um conflito que já dura décadas, ler um pouco mais sobre o conflito e abandonar a tese simplista de Israel como único verdugo do povo palestino. Uma das tragédias do  povo palestino é que ele sofre na mão de muitos carrascos, começando pelo Hamas, cuja luta contra os palestinos seculares não tem trégua desde que assumiu o poder, cuja luta contra as mulheres não tem trégua, cuja luta feroz contra os palestinos cristãos não tem trégua, cuja luta contra a comunidade LGBTQIA+ não tem trégua e cuja guerra contra a OLP em 2006/7 pelo controle da Faixa de Gaza mostrou ao mundo a selvageria do que é capaz o grupo terrorista para atingir seus alvos. Mas o mundo só se interessa pelos palestinos quando eles são vítimas de Israel!

Algumas das grandes perguntas, as mais urgentes que devem responder aqueles que apostam direta ou indiretamente pela equipe do Hamas, são: o que o Hamas pensou que faria o Estado de Israel depois do massacre perpetrado contra centenas de civis israelenses?  A cúpula do grupo terrorista mensurou a resposta de Israel e achou que valia a pena sacrificar milhares de civis inocentes por um futuro melhor? E para aqueles que acreditam que Israel reagiu desproporcionalmente, a pergunta é: que ações deve tomar um Estado soberano quando terroristas o atacam por terra, água e mar assassinando mais de mil civis, capturando como reféns mais de duzentos e violentando, decapitando, queimando vivos e ultrajando centenas de civis inocentes?

Quem acredita ter respostas conclusivas para algumas das perguntas que tem nos deixado atônitos desde o massacre do 7 de outubro é, no pior dos casos, um cínico e no melhor deles, alguém que só repete slogans antigos, superficiais e até ridículos.

Em O sange dos outros, com a profundidade de sempre, Simone de Beauvoir esmiúça o compromisso de cada indivíduo frente à sociedade, o conflito entre o político e o ético, as contradições entre a ação e a ambiguidade moral.  Mais do que isso, chama a atenção sobre como é fácil ter ideias supostamente claras e distintas quando o sangue que está em jogo é o sangue dos outros.

Esta carta teve um único objetivo: apelar à sensatez para, assim, evitar um outro tipo de violência. 

* Marta Francisca Topel

Vice-diretora do Centro de Estudos Judaicos da USP (CEJ/USP)

Foto: NegativeSpace/CreativeCommons

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