A polêmica em torno da minissérie “Our Boys”, da HBO – realidade ou interpretação?

Na terra onde, para cada duas pessoas, há três opiniões, era óbvio que o seriado israelense “Our boys” (HBO) não seria um consenso. A minissérie de 10 capítulos tem como pano de fundo os eventos que levaram ao conflito entre Israel e a Faixa de Gaza em meados de 2014. Mistura eventos reais e ficção. 

Tudo começou em 12 de junho de 2014, quando três adolescente israelenses foram sequestrados quando pegavam carona em uma estrada em Gush Etzion (o maior agrupamento de assentamentos judaicos na Cisjordânia, próximo a Jerusalém). Naftali Frenkel, 16, Guilad Shaer, 16, e Eyal Yifrah, 19, entraram em um carro pensando que chegariam em casa, mas no veículo estavam militantes do grupo extremista Hamas com outros planos.

O sequestro causou comoção entre os israelenses, principalmente depois que o áudio da ligação de um dos meninos para a polícia foi revelado, com ele sussurrando que havia sido sequestrado e depois emitindo um “ai” que já levava a entender que nenhum deles havia sobrevivido ao sequestro. 

A exército deslanchou a operação “Operação Guardião dos irmãos” em busca dos garotos em meio a uma enxurrada de orações e solidariedade, sem contar a hashtag #BringBackOur Boys, refletindo o sentimento nacional de que os três jovens eram os filhos de todos. Os filhos do país.

Foram 18 dias de procura. Mas, em 30 de junho, os três corpos foram encontrados baleados e enterrados em um terreno perto de Hebron de um dos membros do Hamas, que admitiu o que chamou de “ação heróica” planejada por palestino Hussam Hassan Qawasmeh e realizada por Marwan Qawasmeh and Amer Abu Aisheh, ambos mortos em uma ação militar para prendê-los.

A operação que levou à prisão e à morte dos responsáveis levou à chamada “Operação Margem Protetora”. O Hamas lançou 300 mísseis, foguetes e morteiros da Faixa de Gaza contra Israel só na primeira semana de julho. E o exército israelense reagiu com ataques aéreos a também centenas de alvos em Gaza. Sirenes de alertas antiaéreos se tornaram lugar comum no Sul do país e também no Centro do país em cidades como Tel Aviv, Kfar Saba e Petah Tikva. Israel parou por um mês e 73 israelenses morreram (67 soldados e seis civis). 

Em Gaza, bairros inteiros foram destruídos e 2,2 mil palestinos morreram (grande parte militantes do Hamas, além de muitos centenas de civis).

Em meio a tudo isso, outro caso envolvendo um jovem chocou a todos. Um jovem morador da parte Oriental de Jerusalém, Mohammed Abu Khdeir, de 16 anos, foi brutalmente assassinado por três israelenses (Yosef Haim Ben-David e dois menores de idade) como vingança pela morte de Frenkel, Shaer e Yifrah. Khdeir foi espancado e queimado vivo em uma floresta nos arredores de Jerusalém. 

O caso levou a para tumultos em Jerusalém Oriental, mesmo com a prisão dos assassinos (condenados a prisão perpétua, com exceção de um dos menores, sentenciado a 21 anos de cadeia).

A minissérie (coprodução de HBO, Keshet e Movie Plus) se tornou polêmica antes mesmo de ser lançada. Isso porque o nome “Our Boys” se parece com o hashtag #BringBackOur Boys. Parecia ser sobre os três adolescentes israelenses sequestrados. Mas Frenkel, Shaer e Yifrah são quase como um pano de fundo desfocado. Na verdade, o seriado é sobre o assassinato de Mohammed Abu Khdeir e a prisão dos assassinos israelenses. 

Para muitos, o assassinato brutal dos israelenses cometido pelos palestinos do Hamas foi retratado como menos brutal, relevante apenas como motivação para o assassinato cometido por Bem-David e seus comparsas. As circunstâncias da morte de Abu Khdeir são dissecadas até o menor detalhe, repetidas várias vezes. A selvageria e a crueldade parecem ser uma obsessão. Do lado israelense, o assassinato de Frenkel, Shaer e Yifrah não recebe esse tratamento e os assassinos são revelados apenas no final. 

Parece haver há uma identificação mais com a dor da família Khdeir. É como se a morte anterior de três israelenses fosse menos chocante apenas pelo fato de que eles eram colonos. Eles eram “ocupantes” (de acordo com a Lei Internacional) na Cisjordânia, certo? Então talvez “merecessem” seu destino, o que exime o terrorismo palestino de culpa ou responsabilidade.

Para os críticos, o seriado encara a comoção coletiva em Israel pela morte dos três sequestrados na Cisjordânia apenas como “vitimização” dos israelenses (que adorariam se sentir injustiçados). Justamente por isso, os vilões do seriado são claramente os próprios israelesnses: rabinos e membros da comunidade ultraortodoxa em Jerusalém – racistas, misóginos e imorais – que incitaram o assassinato de Abu Khdeir. 

Os criadores do seriado (os israelenses Hagai Levi, Yossef Cedar e Tawfil Abu Wael) sabiam como seria a repercussão em seu próprio país: “Queríamos entender as motivações dos autores desse assassinato mais do que estávamos interessados em entender a vitimização do nosso lado”, alegou Hagai Levi.

O mesmo disse Yossef Cedar, para o qual os israelenses “lidam apenas com o seu senso de vitimização e isso apenas incentiva o próximo ato de vingança”.

Isso remete à sensação apontada por alguns especialistas de que, ao lidar com o conflito entre Israel (como representante do Ocidente) e mundo árabe (o Oriente), Israel é tratado como o “adulto responsável” que deveria agir com responsabilidade e “civilidade”. Já os árabes são vistos quase como “primitivos” ou “crianças” que fazem “besteiras” mas não podem ser realmente responsabilizados por elas. 

Quer dizer: quando um israelense – ou Israel, como um todo – comete um crime, deve ser julgado e condenado com o maior rigor porque, como “civilizado”, deveria se comportar melhor. Já quando um palestino – ou árabes, em geral – comete um crime, deve ser desculpado porque é “primitivo” e não sabe como agir melhor.

Em seu livro “Indústria de Mentiras”, o jornalista Ben-Dror Yemini fala um pouco sobre essa noção: “Reduzir os padrões das normas de decência fundamental para algumas seções da humanidade contém uma suposição embutida que tem cheiro de racismo – insinuando que ‘tais pessoas’ simplesmente não conseguem se controlar ou que estão predestinadas a se comportar de uma certa maneira. Essa atitude é tanto racista quanto perigosa, porque assume a existência perpétua de culturas superiores e inferiores, primitivas”. 

Segundo Yemini, essa visão transforma os árabes em ‘criancinhas’ “que simplesmente não sabem o que estão fazendo e, portanto, recebem um passe livre quando se trata de julgamento moral”. Trocando em miúdos: os palestinos podem ser desculpados quando erram. Os israelenses, não.

Outra crítica diz respeito à política israelense de demolição de casas de famílias de terroristas – uma medida que, para especialistas em segurança de Israel, leva possíveis criminosos a pensar duas vezes antes de agir. Afinal, suas famílias terão muito a perder se eles realizarem um ato terrorista. No seriado, os pais de Abu Khdeir, são mostrados apelando à Suprema Corte para exigir que as casas dos assassinos do filho fossem demolidas, mas “o recurso foi rejeitado”, como se Israel se recusasse a tratar terroristas judeus do mesmo modo que trata terroristas palestinos.

A decisão real da Suprema Corte, no entanto, afirmou claramente que a lei antiterror que permite demolições de casas “se aplica igualmente a terroristas árabes e judeus”, observando que a prática deve ser realizada imediatamente após um ataque terrorista para evitar “copycats” (imitações de outros possíveis terroristas).  Nesse caso, muito tempo havia passado. Da mesma forma, o tribunal interrompeu as demolições das casas dos terroristas palestinos diversas vezes, no passado.

A crítica quanto ao seriado vai mais além, afirmando que a produção enfatiza certos ângulos e ignora outros. Isso pode ser dito sobre toda e qualquer adpatação de fatos reais, obviamente. Os redatores e diretores querem passar suas ideias sobre o assunto e eles têm todo o direito de fazê-lo. O que incomoda aos críticos é a noção de que o que aconteceu com Mohammed Abu Khdeir foi apenas um exemplo – e não uma exceção – do comportamento da grande maioria dos israelenses. 

Mais de 120 famílias de israelenses que perderam parentes em ataques terroristas reclamaram diretamente com a HBO. Em carta à emissora, alegaram que a sociedade israelense condenou veementemente a morte de Abu Khdeir e os criminosos foram presos, julgados e condenados. 

Hagai Levi, no entanto, explicou que seu objetivo era apontar um olhar de introspeção para dentro da sociedade israelense, mostrando que o assassinato de Abu Khdeir não surgiu de um vácuo e sim de um processo de desumanização dos palestinos – e de árabes em geral – que ele percebe em Israel. 

Durante o conflito de 2014, houve manifestações com gritos de “morte aos árabes” em alguns lugares do país: “Tentamos explicar como uma atmosfera específica leva uma pessoa cuja alma é fraca, e quando cerca de milhares de pessoas gritam ‘morte aos árabes’, a realizar um ato extremo”.

O seriado “Our boys” é mais um exemplo de como o que acontece no conflito do Oriente Médio é complexo e pode ser interpretado de acordo com “o freguês”. É como livros enormes – clássicos de Shakespeare ou até mesmo a Bíblia – nos quais pode-se encontrar frases que justifiquem qualquer coisa. Como tudo por aqui, o seriado não apenas expõe fatos reais. Ele os interpreta. E é importante deixar isso claro, independentemente do ponto de vista político do espectador.

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