A entrevista com o ex-chefe do Shin Bet que abalou Israel

Por Daniela Kresch

TEL AVIV – “Resolvi falar agora porque acredito que o Estado de Israel está à beira de um abismo”. Assim justificou o ex-diretor do Shin Bet (a Agência de Segurança de Israel), Nadav Argaman, a rara entrevista que concedeu à jornalista Ilana Dayan, uma das mais queridas e respeitadas de Israel, que foi ao ar no dia 16 de março de 2023 no programa “Uvdá” (Fato, em hebraico). A entrevista de Argaman – e o emocionante monólogo de Dayan que a precedeu – se transformou no assunto mais discutido há dias em Israel em meio à convulsão social causada pelo projeto de reforma judicial do governo Benjamin Netanyahu que pretende enfraquecer a Suprema Corte.

Antes da entrevista, Ilana Dayan, que nasceu na Argentina há 58 anos, fez um monólogo emocionante, no qual dizia que, em 30 anos de jornalismo, nunca sentiu tanta necessidade de desabafar diante das câmeras. “O governo está nos levando a um lugar do qual nenhuma democracia jamais voltou. Decida de que lado da história você quer ficar”, disse, num recado claro ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Se o monólogo tocou muita gente, a entrevista com o sisudo e estressado Nadav Argaman deixou todos com cabelo em pé. Argaman foi nomeado em 2016 por Netanyahu para o cargo de chefe do Shin Bet, que dirigiu por cinco anos e meio. Durante todo esse tempo, ele foi um homem de operações e permaneceu nas sombras. Depois de se aposentar, Argaman não planejava aparecer na frente de uma câmera. Mas a realidade o surpreendeu.

Abaixo, os principais trechos da entrevista (que pode ser vista, em hebraico, AQUI).

ILANA DAYAN – O que mais o preocuparia, hoje, se ainda fosse o diretor do Shin Bet?

NADAV ARGAMAN – O que mais me preocuparia é a divisão na sociedade israelense e a capacidade de manter a democracia. O grande medo é que, se essas leis (da reforma judicial) forem aprovadas, o Estado de Israel esteja à beira de uma ditadura. E quando o Estado de Israel estiver na periferia da ditadura, podemos ver uma desintegração das organizações, do sistema. Por dentro. Afinal, as pessoas que servem (como oficiais ou reservistas no exército ou em organizações de Inteligência) não são obrigadas a isso. E assim como eles decidiram servir, podem decidir igualmente não servir mais. Se eles entenderem que aqui se desenvolve uma ditadura e que eles não estão interessados em servir sob um ditador assim ou assado, eles podem decidir e sair da organização.

ILANA DAYAN – Isso é uma possibilidade real?

NADAV ARGAMAN – Temo que, no caso de uma ditadura no Estado de Israel, vai ter uma debandada em massa das organizações, não sei de que escopo. É aterrorizante num nível inimaginável, mas podemos chegar nesse nível.

ILANA DAYAN – Mas pode ter gente dentro do Shin Bet que acha que essa reforma é ótima.

NADAV ARGAMAN – Essas pessoas continuarão no serviço, provavelmente. Mas há pessoas que não se prestarão a servir numa situação de ditadura. E não demora muito para o sistema entrar em colapso. Imagine isso amanhã: centenas de pessoas de todas as organizações (de segurança), debandando. Para onde iremos?

ILANA DAYAN – Estou tentando imaginar a situação em que uma pessoa do Shin Bet, sênior, júnior, nível médio, chega e pergunta a você o que fazer depois que a reforma for aprovada? O que você diria a ele?

NADAV ARGAMAN – Vamos deixar isso entre mim e ele.

ILANA DAYAN – Mas você não tem certeza se diria a ele para ficar e saudar a bandeira?

NADAV ARGAMAN – (Pausa) Não, não tenho certeza.

ILANA DAYAN – Por quê?

NADAV ARGAMAN – Porque não seria mais a mesma bandeira.

ILANA DAYAN – O que você quer dizer com isso?

NADAV ARGAMAN – A partir do momento em que o Estado de Israel se torna uma ditadura, este não é o país pelo qual você se mobilizou, este não é o país que você quis defender, estes não são os valores nos quais você foi criado, estes não são os valores pelo qual você está disposto a arriscar sua vida.

ILANA DAYAN – Mas isso é relevante quando se trata da necessidade, do desejo e do compromisso com impedir um ataque terrorista, parar uma “bomba-relógio”, fazer uma operação antiterrorismo?

NADAV ARGAMAN – Hoje eu sirvo ao reino, não a um rei. Amanhã de manhã, posso estar servindo a um rei e não ao reino. Muitas pessoas boas não concordarão em servir a um rei. E o reino será irrelevante.

ILANA DAYAN – Só por causa do parágrafo de superação (proposta de reforma judicial que daria ao governo o poder de ignorar decisões do Supremo)? Só por causa da mudança no número de juízes que precisam estar no Supremo para invalidar uma lei do Knesset?

NADAV ARGAMAN – Não subestime isso. É uma mudança de regime, é um golpe de Estado, um golpe jurídico no Estado de Israel para transformá-lo numa ditadura. Não vamos nos confundir e ou subestimar. É diferente de tudo que já vimos antes, é diferente de tudo que conhecemos, tudo é novo. E quem subestima, faz para tentar nos acalmar. Eu escuto de membros da coalizão: “confie em nós”. “Confiar, confiar”…

ILANA DAYAN – Simcha Rothman (o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, um dos mais ávidos proponentes da reforma) diz isso em todas as oportunidades, Bezalel Smotrich (ministro das Finanças) disse isso em uma conversa com internautas no Facebook… Perguntaram: os direitos civis serão violados? (Ele respondeu): “Estou dizendo, acredite em mim, eles não serão violados”.

NADAV ARGAMAN – Quando alguém me diz “confie em mim”, sei que estamos em apuros. “Vai ficar tudo bem, confie em mim, vai ficar tudo bem”… E em quem vou confiar? Vou confiar em Simcha Rothman, o mais extremo dos extremistas? No Ben Gvir, o anarquista criminoso? No Smotrich que quer fazer uma economia “com a ajuda de Deus”? Em quem vou confiar? No Benjamin Netanyahu, que perdeu os freios e está correndo para o abismo? Em quem vou confiar?

ILANA DAYAN – Você não confia no Netanyahu?

NADAV ARGAMAN – Hoje não. Hoje não confio nele.

ILANA DAYAN – Se você tentasse falar com ele, você sabe tão bem quanto eu que ele diria: “Nadav, ouça, você pertence há muito tempo ao campo da esquerda, você e seus amigos não estão contra a reforma, estão contra mim. Vocês não querem me ver como primeiro-ministro, esse é o problema”.

NADAV ARGAMAN – (Risos) Bibi sabe muito bem que é muito difícil me identificar como esquerdista. Minhas opiniões em questões de segurança são de “falcão” (em prol de forte poder militar). Não tem nada a ver com esquerda, direita ou visões de mundo. O que está acontecendo é um evento maior do que ele. É de uma magnitude maior do que todos nós. Trata-se do Estado de Israel e seu caráter, trata-se de um país democrático, trata-se da supremacia do Poder Judiciário. Não se trata de Bibi Netanyahu.

Argaman conta um pouco sobre casos passados e seu bom relacionamento com Netanyahu, na época.

ILANA DAYAN – Ele te escutava?

NADAV ARGAMAN – Sim, havia muita atenção, havia uma paciência sem fim, ele ouvia a todos, prestava atenção no que todos diziam.

ILANA DAYAN – Durante todo o tempo em que você foi chefe do Shin Bet e ele foi primeiro-ministro, você viu um primeiro-ministro que queria deixar uma marca, que tinha senso de história?

NADAV ARGAMAN – Sempre, não há dúvida. Sentimento histórico, queria o melhor do Estado de Israel, muito razoável, este é o Bibi que conheci…

ILANA DAYAN – Durante todo o seu mandato?

NADAV ARGAMAN – Acho que a situação começou a mudar por volta de 2018.

ILANA DAYAN – O que aconteceu, então?

NADAV ARGAMAN – Por volta de 2018, 2019, já tinha julgamentos pairando no ar e a necessidade de lidar com isso. Neste momento, eu acho que algo aconteceu.

ILANA DAYAN – Em todos os seus anos de serviço, você pensou na possibilidade de ter que apertar um botão e dizem: “Há um problema aqui em termos de preservação da democracia”?

NADAV ARGAMAN – Sim, não é segredo que durante o período da Covid, eu me opus a introduzir o Shin Bet em situações operacionais contra os cidadãos de Israel.

ILANA DAYAN – A introdução de uma ferramenta operada pelo Shin Bet para deter cidadãos e interromper cadeias de infecção…

NADAV ARGAMAN – Sim, porque, em primeiro lugar, não havia necessidade disso. Em segundo, era uma intrusão e uma violação dos direitos do indivíduo. Eu disse isso naquela reunião do Gabinete do Corona. Mas depois da reunião, foi realizada uma legislação-relâmpago para permitir que isso acontecesse…

ILANA DAYAN – Para sua consternação.

NADAV ARGAMAN – Para minha consternação.

ILANA DAYAN – A pergunta é se, naquele momento, você já sentia que havia um problema maior do que a questão da pandemia. Ou seja, existia uma tentativa de usar a pandemia para reunir forças que você não achava que o governo deveria ter…

NADAV ARGAMAN – Senti que o governo estava indo longe demais, mas não imaginava que poderíamos nos encontrar tão rapidamente em uma situação muito mais complexa, que a questão da Covid seria uma piada perto dela.

ILANA DAYAN – Tivemos um caso-teste na semana passada quando o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, demitiu o comandante da polícia do distrito de Tel Aviv e a procuradora-geral do governo bloqueou a mudança e ele (Netanyahu) disse ao Ben Gvir: “Está chegando o dia em que teremos de decidir sobre Gali Baharav Miara (a procuradora-geral)”. O que acontece se amanhã a procuradora-geral do governo for demitida, do ponto de vista do chefe do Shin Bet?

NADAV ARGAMAN – Se a procuradora-geral do governo for demitida, será uma catástrofe, nada menos do que isso, do ponto de vista do Estado de Israel. Se Gali for demitida amanhã de manhã e um novo procurador-geral for nomeado de acordo com a vontade (de Netanyahu), é fim de festa.

Ilana discute o fato de o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, ter criticado a procuradora-geral porque ela não deixou que ele, imediatamente após o atentado contra uma sinagoga em Jerusalém, lacrasse a casa do terrorista (como metodologia para dissuadir novos terroristas).

NADAV ARGAMAN – Foi demagogia de um anarquista e não de um ministro nomeado que entende de uma situação. Seu entendimento de segurança nacional é mínimo. Itamar Ben Gvir, se entendesse de algo, entenderia que a questão do selamento imediato (da casa de um terrorista) não tem nada a ver com a dissuasão do Estado de Israel.

ILANA DAYAN – Por que não?

NADAV ARGAMAN – Digamos que fechassem a casa na mesma noite ou alguns dias depois sem saber quem era o terrorista, se ele alugava a casa ou não, se ele morava na casa ou do lado dela… Em suma, há muitos dados aqui que você precisa descobrir para chegar a essa decisão. Então, o Estado de Israel também poderá exercer sua dissuasão, agir de acordo com a lei e não parecer um Estado enlouquecido que queria fechar uma casa enlouquecidamente e cinco minutos depois percebe que o terrorista tinha problemas mentais e que pode ser que tenhamos tomado uma decisão muito precipitada.

ILANA DAYAN – Você se lembra do primeiro encontro com Itamar Ben Gvir?

NADAV ARGAMAN – Sim. Quando ele tinha 16 anos. Pensei que seria bom para o Estado de Israel restringir muito seus passos já nos estágios iniciais. Infelizmente, ele cresceu muito além do que eu jamais imaginei, esperei e sonhei em meus sonhos mais sombrios e, agora, está no comando da polícia de Israel.

No momento em que foi eleito, ele é ministro e é legítimo. Mas que ninguém fique surpreso quando ele (Netanyahu) nomeia um anarquista, um “menino das colinas” (colono extremista) para ser o ministro no comando da polícia de Israel. Assistimos a um show dele esta semana. Vimos Itamar Ben Gvir como ele é. Não amadureceu, se comporta de maneira infantil, não entende de que lado está, não entende que tremenda autoridade e poder tem em suas mãos e é um fator muito perigoso para o Estado de Israel”.

Ilana e Nadav Argaman conversam um pouco sobre a questão palestina e Argaman diz que Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestina, não incita o terrorismo, apesar de estar sob pressão de radicais dentro do governo palestino. Eles também falam sobre o que aconteceu na vila palestina da Hawara, quando colonos colocaram fogo em casas e carros em vingança contra um atentado contra dois israelenses: “Para mim, são terroristas”.

Depois, conversam sobre as tentativas do presidente de Israel, Isaac Herzog, de mediar um debate sobre a reforma judicial.

ILANA DAYAN – Pode ser que os manifestantes tenham se apaixonado pelos protestos e esquecido que no final das contas, pessoas como você terão que conversar com as pessoas que defendem a reforma e encontrar um meio termo?

NADAV ARGAMAN – Acho que algo novo foi criado aqui. Não estamos onde estávamos em novembro de 2022. Acho que nada será como antes. Isso acabou.

ILANA DAYAN – De que maneira?

NADAV ARGAMAN – No sentido de que as pessoas entendem que estão cansadas de ter alguém aqui que carrega o fardo, seja econômico, seja de segurança, seja social, e há quem apenas se aproveite disso.

ILANA DAYAN – Então, é um embate que aconteceria de qualquer forma?

NADAV ARGAMAN – É um embate que não teria acontecido se não tivessem nos empurrado para o extremo. (…)Israel pertence a todos que carregam o fardo. Vivemos em um mundo de cabeça para baixo, o mundo enlouqueceu. Um anarquista se tornou governante e nós, aqueles que servimos ao Estado de Israel todas as nossas vidas adultas…  O tio e o primo de meu pai foram mortos na Guerra de Independência. Meu tio foi morto na Guerra do Yom Kippur. Meu pai se feriu em batalha. Se eles são anarquistas, então eu sou um anarquista orgulhoso.

Só uma pessoa pode parar essa loucura: o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Ele é o único. Ele é quem pressionou todo esse movimento com um planejamento cuidadoso desde o início. E é ele quem pode pará-lo. Tudo está sob seu controle, de ponta a ponta, completamente. Eu conheço o Bibi, sei que ele tem total controle do que está acontecendo. (…) Enquanto isso, este carro está correndo em direção ao abismo enquanto Simcha Rothman adormece no acelerador, Yariv Levin segura o volante, Bibi serve de navegador a e vamos perdendo o caminho”.

ARTIGOS

Inscreva-se na newsletter

MENU

CONHEÇA NOSSAS REGRAS DE
LGPD E CONDUTA ÉTICA

© Copyright 2021 | Todos os direitos reservados.
O conteúdo do site do IBI não reflete necessariamente a opinião da organização. Não nos responsabilizamos
por materiais que não são de nossa autoria.
IBI – Instituto Brasil-Israel
SP – Sao Paulo