Não único, mas sem precedentes

De Yehuda Bauer, publicado originalmente no Haaretz

Tradução Livre de João Koatz Miragaya

18 de abril de 2023

A forma como a sociedade se relaciona com a Shoá (Holocausto) não é isenta de clichês: “seis milhões”, “nunca mais”, “incomparável”, etc. Quando as posições não gozam de conteúdo real, ficamos presos a clichês. Mas se colocarmos os clichês de lado, o que mais podemos dizer hoje, que não tenha sido dito, sobre o genocídio que chamamos Shoá (um termo cujo significado bíblico significa “desastre”, sobretudo um desastre ambiental – algo que a Shoá definitivamente não é)?

Bem, a verdade é que a pesquisa nos permite dizer muitas coisas, mas nem sempre elas são recebidas com boa vontade por muitos que nos escutam. A Shoá não foi única. Se tivesse sido única, ou seja, um evento que não pode se repetir (uma vez que único significa algo que acontece uma única vez), então poderíamos esquecê-la, pois ela não vai se repetir de nenhuma maneira. Mas a Shoá foi um evento causado pelo ser humano, e como tudo o que os seres humanos fazem, ela poderia se repetir, não exatamente igual, uma vez que nenhum evento se repete de forma idêntica, mas de forma parecida.

Única: não. Sem precedentes: sim. Algo parecido com ela não aconteceu no passado, mas pode acontecer no futuro. A principal característica da Shoá, que é sem precedentes, foi a motivação do verdugo: os judeus não foram assassinados porque desejavam suas posses. Eles até tomaram as suas propriedades, que não eram muitas na Rússia e na Polônia, por exemplo (cerca de três milhões ou mais dos judeus assassinados eram cidadãos da Polônia antes da guerra), e não havia necessidade de assassiná-los para roubá-los. Era possível escravizá-los (e eles o fizeram), mas sua força de trabalho era um interesse temporário. O objetivo final era matá-los.

E a motivação pelo assassinato era ideológica. Os nazistas e os seus parceiros assassinaram não por interesses econômicos ou políticos, muito pelo contrário. Se não fosse o antissemitismo assassino, os judeus que viviam na Alemanha e nos países que com ela cooperavam, certamente teriam lutado bravamente pelo Reich. Acontece que o antissemitismo da liderança nazista não foi apenas a causa da Shoá, mas também um fator importante – talvez até decisivo – entre os fatores responsáveis ​​pela guerra. Isso pode ser comprovado.

Em outubro de 1936, Hermann Göring, o número 2 da hierarquia nazista, foi nomeado como o responsável pelo “Plano Quadrienal” (o programa paralelo aos “Planos Quinquenais” da URSS), que preparasse a Alemanha para a guerra desejada pela liderança nazista. Em agosto do mesmo ano, Hitler deu as instruções a Göring por meio de um memorando, talvez o único que ele mesmo escreveu ou ditou, dirigindo-se a Göring na primeira pessoa do singular: “eu”. Este memorando não foi eliminado, e aparece entre os documentos dos Julgamentos de Nuremberg, em traduções em inglês, francês e russo. Foi publicado no original em alemão pelo governo da Alemanha Ocidental em 1977.

No memorando, Hitler explica a Göring por que a Alemanha deveria começar uma guerra em um curto espaço de tempo, e o que vem a seguir é o que está citado (entre outras coisas): “Desde o início da Revolução Francesa, o mundo vem se deteriorando com velocidade cada vez maior rumo a um novo conflito, cuja expressão extrema se chama bolchevismo, cujo objetivo não é mais a eliminação daquelas classes sociais das quais vinham os líderes da humanidade até agora, mas a sua substituição pelos judeus internacionais… Diante desse desastre, a Alemanha tem o dever de se defender e garantir sua existência por todos os meios possíveis; Várias conclusões surgem dessa necessidade, e elas levam às tarefas mais importantes que nosso povo já enfrentou. Porque a vitória do bolchevismo sobre a Alemanha não levará a um acordo nos moldes do Tratado de Versalhes, mas sim à sua extinção final, até mesmo à aniquilação [“Ausrottung”] do povo alemão.”

Compreender este documento não é difícil. Significa que a Alemanha deve iniciar uma guerra, que é basicamente uma guerra defensiva, contra o bolchevismo, que é judeu, porque seu único objetivo é o domínio do judaísmo internacional sobre o mundo. Acontece, portanto, que o antissemitismo nazista foi não só a principal causa do que chamamos de “Shoá”, como também era a base da guerra da Alemanha nazista contra o bolchevismo e seus aliados.

Não sou um grande adepto de explicações unicausais e unidimensionais, e não afirmo que a ideologia que encontrou sua expressão explícita e clara no documento aqui citado seja o único fator que levou à guerra. Mas, por outro lado, parece impossível ignorar a clara base ideológica que a liderança nazista, e antes de tudo o próprio Hitler, delineou diante de seus membros. A força dessa base ideológica mostra que não apenas as causas do Holocausto, mas a própria guerra, são diferentes do que é comumente descrito na maior parte da historiografia existente.

Portanto, com cuidado podemos dizer que os 35 milhões de vítimas da guerra, somente na Europa, pereceram – entre outras razões – não por causa dos judeus, mas por causa da hostilidade aos judeus. Se excluirmos desta regra as vítimas da Shoá (digamos, cerca de seis milhões) – isso significa que aproximadamente 29 milhões de pessoas, não-judias, perderam suas vidas por causa das concepções antissemitas da liderança nazista.

O antissemitismo assassino não foi, como mencionado, o único fator, mas é impossível fugir da conclusão de que ele exerceu (e ainda exerce) uma influência enorme. Não pelo caráter dos judeus, porque os judeus não eram menos bons ou maus, ou mais humanistas ou sociopatas que o resto das pessoas.

Devemos fazer uma comparação entre o fenômeno do nazismo e o que está acontecendo nos dias de hoje? Qualquer análise histórica é baseada, entre outras coisas, em comparações. No entanto, qualquer comparação real destaca não apenas as semelhanças, mas também as diferenças entre os eventos históricos. Sim, existem fatores semelhantes, mas também existem grandes diferenças entre  o passado e o presente. Em todo caso, nada que tenha sido feito com base em ideologia antissemita pode justificar as más ações feitas por alguns judeus ​​hoje.

É comum que os políticos israelenses e seus porta-vozes façam discursos no Dia da Lembrança da Shoá e dos Levantes (como se houvesse uma Shoá e os levantes, e que não houvesse conexão entre os dois – estupidez absoluta), citem alguns depoimentos e falem sobre o perigos que representam o Irã, os palestinos, ou qualquer um que critique a política israelense. Eles não estão falando sobre a Shoá, sobre o contexto no qual ela está inserida, ou sobre as razões de sua ocorrência, mas sobre o presente de acordo com sua compreensão. Nosso público é disciplinado e engole essa bobagem sentimental sem questionamento. Não tenho dúvidas de que isso acontecerá novamente no Dia da Lembrança deste ano. No entanto, também existem aqueles que entendem e fazem as perguntas certas, quer tenham respostas ou não. Entre os questionadores, há uma representatividade significativa das gerações mais jovens. Nossa esperança ainda não está perdida.


Yehuda Bauer é israelense, historiador e estudioso do Holocausto. Nasceu na República Tcheca e é professor de Estudos do Holocausto no Instituto Avraham Harman de Judaísmo Contemporâneo da Universidade Hebraica de Jerusalém.

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