Quem é refugiado?

Karina Hotimsky Iguelka

A questão do deslocamento é um problema mundial. A história do mundo é composta pela migração humana desde sempre. Nós somos todos parte dessa história de migração de forma individual ou coletiva. Atualmente, segundo a ACNUR, 103 milhões de pessoas se deslocam no mundo por razões de perseguição, conflitos e violação de direitos humanos.

A filósofa judia alemã Hannah Arendt, foi uma grande pensadora das questões políticas e éticas do século XX. Em 1933 Arendt foi presa pela Gestapo em Berlim por trabalhar em uma organização sionista.  Depois de solta, fugiu com a mãe, cruzando de forma ilegal a fronteira tcheca, passando por Genebra até chegar em Paris. De lá fugiu para os Estados Unidos onde permaneceu por 18 anos como apátrida. Em 1951 recebeu a cidadania daquele país e lá faleceu em 1975. Tem uma obra importante para o pensamento político que continua muito atual e inclui As Origens do Totalitarismo e Eichmann em Jerusalém, entre muitos outros.

“Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados de refugiados. Nós mesmos nos chamamos de ‘recém-chegados’ ou ‘imigrantes’. Nossos jornais são jornais para ‘norte-americanos de língua alemã’, e, até onde sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelo povo perseguido por Hitler cujo nome indicasse que seus membros eram refugiados”. Assim nos conta Hannah Arendt no texto, “Nós, Refugiados” (in Escritos Judaicos Ed. Amarylis).

O trecho destacado acima, escrito em 1943, quando a autora já vivia nos EUA como apátrida, fala do esforço dos judeus em se sentirem parte das nações em que chegavam fugidos da violência do nazismo. O texto de Arendt nos ajuda a entender como os refugiados são tomados pela urgência e a necessidade de reconstruir a vida e deixar de lado, na medida do possível ou do impossível, a dura realidade de perseguições nos países em que habitaram, o sofrimento do desterro e as enormes perdas advindas dessa condição. Ela descreve a ruptura de laços sociais dos que são forçados a deixar seus lares e precisam adotar sua nova pátria e aprender a se expressar em uma nova língua.

“Nosso otimismo de fato é admirável…. Perdemos nosso lar, o que significa a familiaridade de uma vida cotidiana. Perdemos nossa ocupação, o que significa a confiança de que temos alguma utilidade nesse mundo. Perdemos nossa língua, o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos e expressão espontânea dos sentimentos. Deixamos nossos parentes nos guetos poloneses, e nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração, e isso significa a ruptura de nossa vida privada.” diz a autora.

Sabemos que após a Shoá (o Holocausto) as fronteiras de vários países do mundo foram fechadas com cotas para o recebimento de judeus. O que fazer com aquele enorme contingente populacional que vagava pela Europa sem lugar? O que fazer com aquela população que ninguém queria? Surgiram os Displaced Persons Camps, campos para pessoas deslocadas ou sem lugar, como forma de acomodar as pessoas em trânsito e na busca ansiosa por um pertencimento.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada em 10 de dezembro de 1948 na Europa do pós-guerra a partir do que o mundo assistiu na Shoá. Três anos após o final da Segunda Guerra, pela primeira vez na história da modernidade, compreendeu-se a necessidade de garantir a proteção universal dos direitos do ser humano. A partir de então, os países precisaram rever suas constituições para incluir a questão dos refugiados e garantir seus direitos. No preâmbulo da Declaração está escrito: “Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que todos gozem de liberdade da palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum”. (Declarações Universais dos Direitos Humanos in nacoesunidas.org).

Em 1950, a ONU criou o ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, órgão responsável por zelar pelos direitos e deveres dos refugiados e das nações acolhedoras.  Na Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado (em acnur.org) ficou definido o termo refugiado. Dentre outros itens da definição, chama atenção o que se lê no parágrafo 2: “Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa e temendo ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade, e que não pode, ou em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país…”.

Com o tempo e a emergência de novos conflitos e crises mundiais surgiram também novos fluxos migratórios com necessidades específicas e a Convenção foi ampliada com o Protocolo de 1966 estendendo o direito de pedir refúgio a qualquer pessoa, sem limite de data ou localização geográfica. No Brasil, a lei que define a implementação do Estatuto do Refugiado é de 1977 quando se criou o Comitê Nacional para os Refugiados, o CONARE, responsável pela análise de solicitações e reconhecimento da condição de refugiado. Até hoje existem brechas na lei que não estende proteção a vítimas de condições climáticas, acontecimento marítimos ou que estejam em viagem.

Hannah Arendt é a primeira a denunciar o grande paradoxo dos Direitos Humanos. Aponta que junto a definição de quem tem direito também se define quem está à margem desse direito. Existem hoje pessoas com direitos inalienáveis e um grande número de pessoas que ficam sem direitos.

Refugiados, exilados, solicitantes de refúgio, migrantes, apátridas, deslocados internos, deslocados ambientais são muitas as categorias criadas para nomear a condição de desterro e êxodo que acomete um grande contingente populacional do mundo. O sujeito que se desloca devido a violência ou a necessidade de fuga, precisa de um reconhecimento para a sua condição. Ao mesmo tempo, a forma como o sujeito é nomeado, confere-lhe uma categoria que pode ser definitiva para sua história. A categoria é necessária para definir de que forma a pessoa poderá residir no novo país estabelecendo direitos e deveres. Por outro lado, a narrativa do sujeito sobre si mesmo e o modo como se nomeia é um elemento que traz ou impede possibilidades de existência. Assim, a categoria necessária para definir a condição do recém-chegado a um país, contém também o risco de se tornar um rótulo que aprisione sua história numa condição da qual o próprio sujeito não encontra saída. Ao ter que caber nas categorias sociais que lhe são impostas, há um grande risco de o sujeito ficar identificado com o que dizem dele, com categorias externas nas quais não se reconhece deixando de lado a forma como constrói a sua própria identidade. Há muitos desdobramentos e sofrimento psíquico advindos dessa condição. E o risco do esfacelamento psíquico, a dessubjetivação é o mais grave. “Quanto menos somos livres para decidir quem somos ou para viver como queremos, mais tentamos erigir uma fachada, esconder os fatos e representar papéis” nos diz Hannah Arendt.Hannah Arendt inclui em seu texto que “(…) a discriminação é a grande arma social pela qual se pode matar homens sem qualquer derramamento de sangue.” Cabe a todos nós lutarmos contra a discriminação do estrangeiro, em nós e em nossa sociedade e nos solidarizarmos com o sofrimento e a luta do refugiado.

Karina é Psicóloga e Psicanalista formada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com formação em Psicanálise no Curso de Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Atende em consultório Particular. É diretora do Instituto Brasil-Israel e do Projeto Marcha da Vida do Fundo Comunitário.

Foto: Pixabay

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