O conflito no Yom Kippur em Tel Aviv e o dilema da intolerância 

Daniela Kresch

TEL AVIV – Era para ser um dia de reflexão e expiação coletiva, mas o Yom Kippur de 2023 se tornou mais um palco de conflitos entre israelenses em Tel Aviv, cidade-bastião do liberalismo em Israel. O confronto aconteceu entre os judeus israelenses que desejam um país progressista e democrático e os que querem um país tradicionalista e com leis judaicas acima de tudo. Houve gritaria, xingamento e muito empurra-empurra. Cenas horríveis em qualquer dia, mas ainda mais no Dia do Perdão.

Tudo começou quando alguns israelenses de tendência mais ortodoxa – incentivados por ONGs messiânicas cujo objetivo é acabar com o secularismo em Israel – decidiram erguer divisórias para realizar uma das rezas segregando homens e mulheres durante o Yom Kippur. E isso numa das praças mais centrais, públicas e famosas de Tel Aviv, a Praça Dizengoff.

A ideia de realizar algo assim (a divisão entre homens e mulheres), num local aberto e público, tinha sido proibida dias antes, tanto pela prefeitura de Tel Aviv como pela Suprema Corte. Afinal, há sinagogas a granel na cidade, a maioria delas com essa prática de separação entre homens e mulheres. Uma prática defendida pelos mais judeus religiosos ortodoxos, mas repudiada pelos judeus reformistas e até mesmo muitos conservadores (denominações mais liberais).

Mesmo assim, no momento em que começou o Yom Kippur, no domingo ao anoitecer, um grupo de ortodoxos colocou as muretinhas de separação (feitas de ferro e tecido) na praça, com cadeiras a cada lado. De um lado, só homens, de outro, só mulheres. Imediatamente, muitos moradores de Tel Aviv que moram nos arredores passaram a gritar e exigir a retirada das divisórias, alegando que os ortodoxos não tinham direito de se apropriar de um espaço público para impor uma divisão de gênero.

No final das contas, as divisórias foram retiradas, assim como as cadeiras. Os organizadores da reza segregada tiveram que ser escoltados para fora da praça sob gritos e xingamentos. Houve alguma violência física, como empurrões.

Para quem acha que os seculares de Tel Aviv exageraram e são intolerantes, é preciso entender as nuances. Quem sugeriu e iniciou o plano de fazer a reza é um cara chamado Israel Zeíra, da ONG “Cabeça Judaica”, que é conhecido por enviar discípulos para locais seculares em Israel com o objetivo de pregar o “verdadeiro judaísmo” (o ortodoxo, claro) aos próprios judeus. O objetivo é “converter” os infiéis seculares em judeus ortodoxos.

Na visão dele e de outros como ele, se o único judaísmo admissível é o extremamente religioso (ortodoxo, ultraortodoxos e afins), todos os judeus de Israel devem ser convertidos para que o país seja um “verdadeiro” Estado Judeu. Tenho certeza, também, que ele preferiria que não houvesse minorias não-judaicas no país (alguém tem dúvida disso?).

Para acabar com o secularismo dos “maus judeus”, esse tipo de fanático acredita que é preciso ir aos centros seculares e impor hábitos e costumes (ou educar os ignorantes, os coitados, que não sabem o que ser realmente ser judeu). É nesse contexto que Israel Zeíra e outros têm tentado plantar a semente da discórdia entre os moradores de Tel Aviv e outros locais com população mista, onde cada um pode exercer – ou não – o seu judaísmo como queira. Essas tentativas acontecem não só em rezas no Yom Kippur, mas no sistema educacional, no exército, em eventos públicos, etc.

Para acabar com o secularismo dos “maus judeus”, esse tipo de fanático acredita que é preciso ir aos centros seculares e impor hábitos e costumes (ou educar os ignorantes, os coitados, que não sabem o que ser realmente ser judeu). É nesse contexto que Israel Zeíra e outros têm tentado plantar a semente da discórdia entre os moradores de Tel Aviv e outros locais com população mista, onde cada um pode exercer – ou não – o seu judaísmo como queira. Essas tentativas acontecem não só em rezas no Yom Kippur, mas no sistema educacional, no exército, em eventos públicos, etc.

Por muito tempo, os seculares e religiosos light israelenses se calaram por respeito aos mais religiosos. Mas a recente polarização do país por causa da reforma judicial que a atual coalizão de governo quer aprovar para enfraquecer a democracia fez que muitos dissessem: “não mais”. A tática dos fanáticos sempre foi a de esgarçar o quanto puderem o tecido social, testar as linhas do consenso no país e, aos pouquinhos, comer pelas beiradas na tentativa de converter judeus ao seu tipo de judaísmo. Acabar com o secularismo. Mas, recentemente, os passos de formiguinha estão virando de elefante, com apoio – tácito ou menos tácito – deste governo.

E eles têm o apoio gritante do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que nem um judeu ortodoxo é. O que disse Netanyahu, assim que acabou o Yom Kippur? “Manifestantes de esquerda entraram em confronto com aqueles que oravam (…). Eu, como a maioria dos cidadãos de Israel, rejeito esse comportamento violento. Ele não tem lugar entre nós”.

Quer dizer: a culpa é dos seculares. Claro, eles votam menos em Netanyahu e, certamente, a razão está sempre com seus eleitores.

Mas não só ele. O Ministro das Finanças, o ultradireitista religioso Bezalel Smotrich, também condenou as ações de uma “minoria de extremistas” (os seculares, óbvio) que, nas suas palavras, “incendiaram e trouxeram desgraça a este dia sagrado”. E não podia faltar o ministro da Segurança Nacional, o ultranacionalista Itamar Ben-Gvir, que prometeu realizar uma reza pública na Praça Dizengoff, nesta quinta-feira (28 de setembro), só para provocar os moradores de Tel Aviv. Ele não deixou claro se a reza seria segregada, no entanto.

O ex-premiê e líder do partido de centro-esquerda Há Futuro, Yair Lapid, respondeu ao atual primeiro-ministro: “Senhor Netanyahu, no final do Yom Kippur, um primeiro-ministro não deveria aumentar o incitamento e o conflito, mas tentar acalmar os ânimos. Para sua informação, a maioria das pessoas que vieram protestar contra a coerção jejuaram e oraram neste Yom Kippur. Eles não são contra o Judaísmo, tentam salvar o Judaísmo do grupo racista e extremista a quem você deu poder”.

O prefeito de Tel Aviv, Ron Huldai, qualificou o conflito de “uma batalha pela essência da cidade”, enfatizando a necessidade de reconciliar visões de mundo concorrentes. Mas, como se sabe, pelo menos em Israel, quando se fala em “conciliação”, a expectativa sempre é que os não-ortodoxos deem passos em direção aos ortodoxos. Ok, vamos só comer comida kosher em locais públicos. Os, vamos nos cobrir (principalmente mulheres) em eventos oficiais. Ok, não há transporte público no shabat.

Poucas vezes, a visão de mundo dos seculares e dos religiosos reformistas ou conservadores mais tolerantes é aceita como válida pelos fanáticos que não querem visões do judaísmo diferentes das deles. O dilema da tolerância é difícil. Devem os mais tolerantes aceitar os totalmente intolerantes? Ou são intoleráveis?

Israel passa, neste momento, pelo auge desse dilema. Os seculares, progressistas, religiosos tolerantes e afins – a grande maioria da população – não está mais preparada para se calar. A pergunta é: será que isso levará Israel a confrontos violentos internos, algo com aroma de guerra civil? A resposta pode ser terrível.

Foto: Reprodução/Twitter @nomoredonkey

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