O mês em que a humanidade perdeu sua alma

Jawdat Abu-El-Haj, professor da Universidade Federal do Ceará*

            Outubro de 2023 foi o mês mais trágico para palestinos e israelenses desde a década de 1940. Em poucas horas do dia 7 de outubro foram mortas centenas de civis israelenses. Logo veio o revide consumindo a vida de milhares de palestinos, em sua maioria crianças e mulheres. Outubro foi um espetáculo de horrores, um mês em que a humanidade perdeu sua alma. Todos ficamos e continuamos perplexos perante tamanha violência. Ninguém imaginava que o conflito se deteriorasse às formas mais primitivas e brutais da luta pela existência. No entanto, um olhar mais atento sobre os acontecimentos políticos internos que vinham ocorrendo tanto em Israel como na Palestina mostra que a tragédia seria inevitável, uma tragédia anunciada.

            O trágico outubro começou já nas eleições de 2022 em Israel, quando a volta de Benjamin Netanyahu ao comando do governo não se mostrou uma surpresa. Conhecido como um mago eleitoral, Netanyahu se tornava o mais longevo primeiro-ministro. Mas, a grande suprresa seria sua inusitada coligação, que reuniu o Likud, a ultra-direita nacionalista e os fundamentalistas religiosos. Pior ainda, a coligação de 2022 via na vitória eleitoral a oportunidade rara de revisar duas questões existenciais para o estado de Israel: 1. a identidade nacional e 2. a doutrina da segurança.

            As intenções da ultra-direita iniciaram logo no primeiro ato do novo governo, quando o ministro da justiça enviou à Knesset, em janeiro de 2023, uma proposta de reforma do judiciário. Sem detalhamento, retirava o poder da Suprema Corte de rever a legalidade das leis promulgadas pelo legislativo. Na prática, essa decisão concentrava os três poderes nas mãos do primeiro ministro, uma vez que o sistema parlamentar já garante ao executivo a maioria legislativa. A rapidez do trâmite da reforma do judiciário amedrontou a sociedade israelense, que passou a temer a rápida transição para uma autocracia, regime que concentra os três poderes num único líder. Em última instância, toda autocracia termina na anulação do estado de direito.

            A consolidação do estado de direito em Israel já tinha sido algo difícil de equacionar, pois precisou de décadas de acomodação entre o judaísmo como identidade nacional, e a democracia representativa como sistema político. Esse tênue equilíbrio começou com o acordo entre o Mapai (precursor do trabalhismo) e o Agudat Israel, os fundamentalistas não-sionistas. Neste entendimento, o pragmático Ben Gurion ofereceu ao rabinato a jurisprudência sobre os assuntos pessoais (vida privada), mantendo a religião fora da política e da economia. Ao mesmo tempo, ambos os lados concordaram em adiar a elaboração de uma Constituição que garantisse a igualdade de direitos, temendo que esta acentuaria as disputas sobre a identidade nacional. Porém, alguns observadores atribuíram o abandono da Constituição ao bloqueio dos direitos dos palestinos em Israel que permaneceram sob um regime militar até 1966. De qualquer modo, no lugar da Carta Magna foram adotadas Leis Gerais, o equivalente a artigos constitucionais. Entre 1992 e 1995, durante o mandato de Yitzhak Rabin numa coligação com Meretz, a Knesset aprovou duas leis gerais que garantiram os direitos iguais de gênero, religião, etnia e orientação sexual. O aprofundamento da democracia israelense nestes anos foi referendado pelo otimismo dos acordos de paz com os palestinos, egípcios e jordanianos.

            As duas novas leis gerais logo foram acolhidas com entusiasmo pela Suprema Corte, sob a liderança proativa de Aharon Barak, passando a orientar os julgamentos relativos às questões constitucionais. Iniciava-se uma revolução constitucionalista em Israel, que buscava garantir o estado de direito para todos os cidadãos. A ultra-direita israelense e seus aliados fundamentalistas nunca perdoaram a Suprema Corte pela defesa da igualdade como princípio da democracia. Para as forças reacionárias, esse novo cenário representava uma ofensa ao caráter nacional judaico do estado, compreendido como a supremacia judaica imposta a Israel, bem como aos territórios palestinos ocupados. A ofensiva hegemônica de 2022 somente pode ser compreendida como um ataque frontal ao estado de direito e a igualdade política como princípio da democracia moderna. Um componente essencial deste programa reacionário foi a redefinição da segurança nacional, englobando os territórios palestinos.

            O Likud nunca aceitou o princípio de um estado palestino autônomo, admitindo apenas a existência de uma administração palestina local. Durante os acordos de Oslo, o partido liderou um cruel ataque pessoal a Yitzhak Rabin, levando ao seu assassinato por um fanático da ultra-direita. Porém, o governo de 2022 deu um passo além, adotando três medidas que sinalizavam uma decisão de liquidar as aspirações nacionais palestinas e, de fato, adotando o princípio da supremacia judaica. O primeiro ocorreu quando os ministros da direita radical incentivaram a organização de milícias judaicas armadas que passaram a agir violentamente contra a desarmada população palestina na área C da Cisjordânia, região submetida ao exército israelense. O segundo foi o agravamento da divisão política entre Gaza e Cisjordânia, provado pelo governo de Netanyahu. Desde 2006, quando o Hamas tomou o poder de Al-Fatah em Gaza, o governo israelense permitiu que o Catar transferisse volumosos recursos financeiros para a liderança do Hamas. Finalmente, o terceiro se deu quando o governo israelense buscou relações diplomáticas com os países Árabes, colocando-se como seu aliado contra o Irã. Com isto, Netanyahu esvaziava o apoio regional aos palestinos.

            Consolidou-se uma opinião pública palestina que o governo israelense de 2022 estava determinado a destruir qualquer possibilidade de um estado, reforçada ainda pela suspeita de que Israel preparava o terreno para induzir a transferência dos palestinos. Diante do avanço da nova agenda da ultra-direita, o Hamas iniciou a sua ofensiva hegemônica na Cisjordânia. A sua intenção de assumir as rédeas da política palestina já era clara desde seu nascedouro. O Hamas resistiu ingressar na OLP, indicando sua oposição ao princípio de um estado palestino multicultural. A própria prática política do Hamas divergia diametralmente da linha adotada pela OLP desde sua refundação em 1967, a saber: a pluralidade político-ideológica e a autonomia decisória palestina perante os países árabes. Ao negar o pluralismo ideológico, o Hamas preferiu fazer alianças externas em detrimento da unidade nacional. O jogo arriscado do Hamas, de aliar-se às forças regionais e interferir na política doméstica dos países árabes, começou na primeira fase da guerra civil da Síria, quando apoiou a oposição e a Turquia contra o regime de Assad. Mas, ao perceber a resiliência de Assad, aproximou-se do Hezbollah e do Irã. Durante os tumultos políticos no Egito, levantou a bandeira da Irmandade Islâmica e, na Jordânia, do bloco islâmico. Recentemente compõe o chamado eixo da resistência, juntando-se ao Hezbollah, Irã, aos Houthis no Yemen, e ao Hezbollah iraquiano, apostando numa unidade regional contra Israel. Embora as escolhas arriscadas do Hamas tenha ampliado suas capacidades políticas e militares, por outro lado, multiplicaram-se seus inimigos no mundo árabe.

            Por volta de 2022, o Hamas e a ultra-direita israelense dominavam as agendas políticas dos dois povos. Enquanto a ultra-direita israelense avançava contra o estado de direito, sacrificava a democracia pela supremacia judaica, utilizando-se de todos os meios, inclusive da violência bruta contra os palestinos, o Hamas, no lado palestino, optava pela linha militar, rompendo com a unidade interna e formando alianças externas. Era questão de tempo para que uma colisão frontal entre essas duas forças emergisse, submetendo os dois povos a esta violência brutal. O insano mês de outubro é resultado desse quadro. A catástrofe humana e política (diria também cultural) mostra o fracasso dessas duas vias. Israel nunca enfrentou uma crise existencial de tanta intensidade e envergadura. O mesmo em relação aos palestinos em Gaza, submetidos ao mais cruel ataque militar da história do Oriente Médio e ainda abandonados pela comunidade internacional, os países árabes e o tal eixo de resistência.

            É o momento para retomar a sensibilidade política, enfatizando que a autodeterminação dos povos é algo inseparável do estado de direito que, por sua vez, depende da segurança mútua entre os dois povos. Outubro espalhou o desespero e a barbárie, mas também a perspectiva de rever os erros políticos e buscar o caminho de uma paz justa e permanente.

*Jawdat Abu-El-Haj, palestino naturalizado brasileiro, nascido em Jerusalém. Professor da Universidade Federal do Ceará desde 1987. Sua área de atuação é politicas públicas com ênfase na politica das telecomunicações e dos recursos hídricos. Doutor pela Universidade da California Riverside e pós-doutor pela Brown e Columbia. Integrante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC e do Programa de Doutorado em Políticas Públicas da UECE. Foi consultor do PNUD na Cisjordânia, em 1997, e em Gaza, em 2002.

Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel. O espaço é aberto para diversos colaboradores, com múltiplas opiniões.

Foto: Kibutz Be’eri – Felipe Wolokita

ARTIGOS

Inscreva-se na newsletter

MENU

CONHEÇA NOSSAS REGRAS DE
LGPD E CONDUTA ÉTICA

© Copyright 2021 | Todos os direitos reservados.
O conteúdo do site do IBI não reflete necessariamente a opinião da organização. Não nos responsabilizamos
por materiais que não são de nossa autoria.
IBI – Instituto Brasil-Israel
SP – Sao Paulo