Será que da tragédia de sete de outubro nasce uma parceria judaico-beduína?

Revital Poleg

A sociedade israelense está passando por uma grande turbulência nestes tempos, desde o ataque terrorista bárbaro do Hamas (7 de outubro). Estamos vivendo uma espécie de montanha-russa emocional de intensidades variáveis e grande volatilidade. O destino dos sequestrados, bem como a enorme preocupação com os soldados que estão na guerra ficam a frente do mais profundo temor que se abriga nos corações de todos.

Na véspera de sexta-feira, 15 de dezembro, tais sentimentos atingiram um novo pico. O povo de Israel prendeu a respiração ao ouvir a péssima notícia de que a Força de Defesa de Israel (IDF) havia matado acidentalmente três reféns. Como ficou claro posteriormente, os três – Yotam Haim (28 anos), Alon Shamriz (26 anos) e Samer Talalka (24 anos) – tentavam escapar do cativeiro do Hamas, após 70 dias de sofrimento indescritível. Eles foram erroneamente identificados como ameaça e acidentalmente mortos, em uma coincidência trágica que o coração não consegue suportar.

Cada pessoa é um mundo inteiro, uma única história de vida. Mas existem histórias que retratam uma realidade que vai além de sua própria narrativa particular, a história de uma sociedade inteira e de um contexto complexo. Assim é o caso de Samer Talalka, que foi sequestrado na manhã do ataque do Hamas no galinheiro do Kibutz Nir Am, onde costumava trabalhar nos finais de semana substituindo seu pai.

“Judeus, árabes; todos foram machucados pela mesma ferida”, diz Fouad, o pai de Samer, em sua casa localizada na cidade beduína de Hura. Essa afirmação demonstra, acima de tudo, que todos os cidadãos de Israel compartilham o mesmo destino, independentemente de religião, etnia e gênero. “Quando eles (o Hamas) o levaram, acharam que ele era israelense. Não se preocuparam nem um pouco com a religião dele”.

Sangue se misturou com mais sangue naquele sábado, 7 de outubro. Dezenove dos assassinados eram cidadãos beduínos. Seis cidadãos beduínos foram sequestrados para Gaza naquele dia. Deles, dois – os irmãos Aisha e Belal – foram libertados mediante o acordo  de devolução dos sequestrados colocado em prática no final de novembro.

Cerca de 302 mil beduínos moram no Negev, localizado ao sul de Israel, e outros 110 mil no norte do país. A população total de beduínos em Israel constitui cerca de um sexto da população árabe (pouco mais de 2 milhões de pessoas), que constitui a quinta parte da população israelense total.

Os beduínos do Negev vivem em nove municípios estabelecidos pelo estado e em um grande número de aldeias, algumas das quais não são reconhecidas pelo estado devido a uma disputa jurídica e política em torno da questão da posse das terras onde moram. Todas as comunidades beduínas no Negev, sem exceção, são caracterizadas por um status socioeconômico particularmente baixo, um baixo nível de desenvolvimento, uma significativa falta de infraestrutura básica, um nível mínimo de serviços, pobreza e uma alta taxa de desemprego. Ao longo dos anos, foram tomadas medidas importantes de desenvolvimento com resultados importantes, mas insuficientes, e é responsabilidade do estado interromper a negligência acumulada que levou à situação atual.

O nível de criminalidade entre a sociedade beduína é particularmente alto, representando cerca de um quarto de toda a criminalidade em Israel, e a polícia é incapaz de enfrentá-la. Entretanto, é importante esclarecer que, embora o número de pessoas de fato envolvidas em crimes na sociedade beduína seja relativamente reduzido, sua presença e escopo são significativamente altos e muito preocupantes. A maior vítima disso é a sociedade judaica do sul, que sofre muito com esses crimes e tem medo deles, situação que cria tensão inerente entre as duas sociedades.

No entanto, essa situação não deve ser projetada na sociedade beduína como um todo, nem ser tratada segundo padrões errôneos que costumam ser negativos e não representam o cenário completo.

“Desculpe-me por arruinar sua ilusão de sentar-se em uma tenda”, diz a mãe de Samer, com um sorriso levemente cínico, à jornalista Smadar Shir, que foi entrevistá-la após a morte do filho. Isso ocorreu quando elogiou a mãe por sua bela casa. “Nós, em Hura, não temos mais barracas”, acrescentou a mãe, uma respeitada educadora formada e com mestrado. Ambas as filhas mais velhas também são educadoras, a filha e o filho mais novos planejam seguir carreira tecnológica, e a mais nova ainda está na escola.

Os eventos de 7 de outubro encontraram a sociedade beduína em um estado particularmente frágil e vulnerável. Embora as dificuldades já estivessem presentes muito antes da chegada da presente crise, essa é a primeira vez que a sociedade beduína foi exposta a um contexto tão grave de segurança, em escala considerável e dentro de um prazo tão curto. Além disso, o nível de proteção na sociedade beduína é relativamente baixo, em comparação com outras regiões. Essa situação tem um impacto sobre o senso de resiliência dessa sociedade, que está lidando agora com as dificuldades emocionais causadas pelo ataque e a guerra que o seguiu, com os desastres que atingiram parte de seus membros e com o trauma global dos israelenses, que não poupa ninguém.

Mas, além das dificuldades objetivas, há também pequenos momentos de bondade. O espírito de voluntariado, que sempre caracteriza a sociedade israelense, sobretudo em tempos de emergência, e que se desenvolveu em escala sem precedentes na guerra atual, tampouco escapou à sociedade beduína. O sentimento de destino comum e de solidariedade mútua que se desenvolveu entre as sociedades judaica e beduína assumiu um novo e empolgante significado.

Logo após as atrocidades do Hamas, surgiram parcerias voluntárias entre judeus e beduínos que, em circunstâncias “normais”, provavelmente não teriam sido previstas. No coração da área industrial de Rahat, a maior cidade beduína, um enorme hangar foi montado, em colaboração com os membros da organização “Brothers in Arms” (a mesma organização que foi uma das lideranças do protesto contra a reforma do judiciário ocorrida aqui antes do ataque do Hamas). Judeus e beduínos juntos (entre eles muitas mulheres) iniciaram a distribuição de artigos domésticos, roupas e pacotes de alimentos para os moradores que perderam todas as suas posses devido ao ataque do Hamas, tudo doado por pessoas ou empresas. A sinergia criada entre os voluntários é empolgante, a interação humana é natural e a questão da afiliação setorial – se judeu ou beduíno – irrelevante aqui. A sensação de destino comum é o que conecta todos. Ao longo dos dias, também foram reveladas várias histórias de heroísmo de cidadãos beduínos que resgataram muitas pessoas do inferno do Hamas, arriscando suas próprias vidas.  O que predominou foi a solidariedade. Não a vinculação setorial.

“A mensagem”, explica Fouad, diretor do Centro Cultural de Rahat e um dos idealizadores da iniciativa conjunta de voluntariado, “é que, mesmo quando a guerra acabar, podemos trabalhar juntos. Ambas as sociedades, judaica e beduína, precisam fazer uma ‘autoanálise da alma’. Os residentes de Rahat não esquecem a negligência e os estereótipos que enfrentaram, mas acreditam que o 7 de outubro pode e – provavelmente – irá criar uma mudança fundamental: ‘Este país é de todos nós, e se precisarmos nos esforçar mais pela convivência interna, faremos isso juntos.”

Na sua bela casa da cidade de Hura, a mãe de Samer, o sequestrado que foi morto acidentalmente, conta à jornalista que seu coração fica extremamente emocionado quando os judeus chegam para confortá-la. “Muitos vêm”, ela observa. “O dia 7 de outubro uniu a todos. Não há mais diferença entre judeus e muçulmanos; somos todos seres humanos”.

Foto: Benny Gross/WikimediaCommons

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