Democracia em tempos de guerra: o caso de Ofer Kasif

Revital Poleg

Embora Israel venha lutando em Gaza já há quatro meses, desde o ataque terrorista bárbaro do Hamas em 7 de outubro, 136 reféns ainda se encontram em cativeiro do Hamas e a perspectiva de sua libertação não está à vista. Enquanto isso, as circunstâncias cotidianas dos cidadãos israelenses ficaram mais complexas do que nunca e exigem respostas legislativas adequadas à situação, certos ministros, bem como membros do Knesset, parecem menos ativos e envolvidos do que em outros tempos. 

Há quem argumente que, já que os processos de tomada de decisão são concentrados, em sua maior parte, nas mãos do “Gabinete de Guerra”, chefiado pelo Primeiro-Ministro, e, em um grau muito menor, dos ministros membros do gabinete ampliado, todos os “demais” ficam com muito menos missões. 

Embora alguns dos comitês da Knesset, que constituem o cerne da atividade parlamentar, continuem realizando importantes atividades em larga escala, os demais membros e comitês do parlamento estão bem menos ativos. Desde o início da guerra, o número de dias de plenário foi reduzido de três por semana para apenas dois, alguns parlamentares deixaram de frequentar a Knesset, e o parlamento, como organização que já ficou enfraquecido ao longo dos anos (e ainda mais desde o início do atual governo de Netanyahu), funciona atualmente em um nível mais modesto, com os corredores vazios e um escopo de atividades reduzido.

No entanto, em certas questões, a maior parte dos membros da Knesset mostra intensa atividade. Tal é o caso da petição de destituição apresentada contra o membro da Knesset Ofer Kasif, do partido Hadash, o único membro judeu dessa legenda, cujos outros membros são todos árabes. O motivo da exigência de impeachment de Kasif foi sua assinatura de uma petição que apoia o processo judicial iniciado pela África do Sul contra Israel, segundo o qual Israel está cometendo genocídio.

Foram favoráveis a abertura de um procedimento de impeachment 86 membros da Knesset. O documento foi levado ao comitê do parlamento para debate e foi aprovado por uma ampla maioria de 14 contra 2, por volta de uma semana atrás. Entre os que NÃO assinaram pelo procedimento, foram o próprio Primeiro-Ministro Netanyahu, o Ministro Benny Gantz, o líder da oposição Yair Lapid, membros do Partido Trabalhista e, o parceiro de facção de Kasif, o árabe membro do Knesset, Ayman Odeh, líder do partido Hadash, e Ahmad Tibi, líder do partido Ta’al, que nem sequer foram informados por ele de que havia assinado a petição.

Apesar da objeção da conselheira jurídica, a petição foi aprovada pelo comitê, que alegou que o apoio de Kasif à luta armada do Hamas contra Israel o desqualifica como membro da legislatura. O comitê esclareceu que, por sua vez, como o processo legal em Haia pode levar a uma conquista estratégica para o Hamas em tempos de guerra, o apoio de Kasif a esse processo e o seu chamado para o fim da guerra é o mesmo que apoiar a luta armada por parte de organizações terroristas. A decisão final será tomada no plenário do Knesset, onde uma maioria de 90 parlamentares é necessária.

“É parte do preço que devo pagar pelo meu ponto de vista, e faço isso com orgulho e total fé na retidão dos meus caminhos”, declarou Kasif, no comitê.

“Muitos no Knesset querem expulsar Kasif para depois expulsar todos os árabes da Knesset”, disse o parlamentar Ahmed Tibi. “Posso entender sua raiva e a do público quanto a Kasif e às nossas posições, especialmente depois do trauma que vocês sofreram. É humano. Porém, justifica um debate, e não um procedimento de impeachment precedente que anula a vontade dos eleitores de seu partido.”

Foi particularmente interessante o posicionamento da conselheira jurídica do governo que se opôs ao impeachment: “Kasif quer desafiar os conceitos aceitáveis pela sociedade israelense e se considera alguém que luta pela sua imagem moral. É legítimo se opor, mas é difícil ou até impossível aceitar que essa posição, que claramente opõe-se aos massacres e o terrorismo, seja considerada como um apoio à luta armada”.

A questão que surge do acontecimento é menos sobre o fato de Kasif ter assinado a petição, e mais sobre questões como liberdade de expressão, de informação e de escolha, que, a meu ver, são fundamentais e constituem uma expressão da democracia israelense.

Kasif foi sempre um membro muito ativo da Knesset e, ao mesmo tempo, bastante impopular, não apenas por causa de suas opiniões que são consideradas extremas, mas, acima de tudo, por suas provocações, que se tornaram sua marca registrada. Porém, a liberdade de expressão é um valor mais alto do que o grau de simpatia por um determinado membro do parlamento. É verdade que nem toda declaração é legítima, e o próprio Kasif deve ser o primeiro a se perguntar se o lugar dele é na Knesset, se é assim que pensa sobre o estado que ele representa, mas o próprio ato que ele fez (que pessoalmente me deixou incomodada) é principalmente uma provocação – que tem como objetivo gerar mais reações a favor do lado provocador, conforme o que Kasif espera produzir.

“Eu não concordo nem um pouco com o que você diz, mas vou defender até a morte o seu direito de dizê-lo”, afirma uma das declarações mais famosas sobre liberdade de expressão (erroneamente atribuída a Voltaire). Com exatamente o mesmo espírito, a consultora jurídica argumentou na audiência do comitê que a destituição de um membro da Knesset é uma ação que prejudica gravemente o direito de eleger e ser eleito, bem como os direitos pessoais do parlamentar e a liberdade de expressão política. Portanto, tais ações, se e quando iniciadas, devem ser feitas somente de acordo com a lei e com base em uma infraestrutura de provas bem estabelecida”.

Em meio à difícil guerra pela qual Israel está passando nos últimos quatro meses, esse é um importante lembrete da força do sistema jurídico e da democracia israelenses, que se mantêm firmes contra tentativas inaceitáveis de enfraquecê-los, ecoando os dias de reforma jurídica que vivenciamos em 2023. Esse é o mesmo sistema que também toma muito cuidado em garantir que Israel cumpra a lei internacional sob circunstâncias nada simples.

E qual é o próximo passo no processo de impeachment? A pergunta  será votada no plenário da Knesset. Se 90 membros do parlamento votarem a favor, o pedido será aprovado. É bem provável que isso aconteça. Se assim for, Kasif recorrerá  à Suprema Corte com uma petição, e a decisão da Knesset provavelmente será rejeitada. Isso certamente será usado pelos defensores da reforma jurídica em seu ataque contra o sistema judiciário e, por outro lado, será também usado pelos oponentes da reforma em seu apoio ao mesmo sistema. Tudo isso enquanto a guerra em Gaza prossegue. É quase como se fosse um universo paralelo.

Ofer Cassif é o homem localizado no centro da imagem. Foto/WikimediaCommons

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