Em memória de Sami Michael: celebrando a vida e a literatura de um visionário

Revital Poleg

Em meio ao caos da guerra e suas dores que têm nos preocupado por tempo demais, é apropriado dedicarmos mesmo que alguns momentos para refletir sobre a figura e o legado do escritor Sami Michael – um dos mais importantes intelectuais e gigantes culturais de Israel, que nos deixou no início deste mês. Talvez não seja coincidência o fato de Sami, um eminente humanista, nos ter deixado precisamente nesta conjuntura. Costuma-se dizer dizer que “quando os canhões rugem, as musas se calam”. De fato, a voz de Sami Michael talvez tenha sido silenciada, mas a literatura e as ideias que ele deixou ressoarão por muitos anos, como deveriam. No dia de “Shloshim” de seu falecimento, este artigo é um tributo à sua honra e à sua memória. Ele merece!

Nascido e criado no Iraque sob o domínio britânico, Sami Michael veio ao mundo em 1926. Aos 15 anos de idade ele se juntou à resistência comunista do Iraque, opondo-se ativamente ao regime então em vigência, em prol dos direitos humanos. Em 1948, após um mandado de prisão ser emitido contra ele, fugiu para o Irã e mudou seu nome. Um ano depois, temendo extradição para o Iraque, ele fugiu para Israel (embora à princípio tenha pensado que o avião estava indo para Paris). Inicialmente, estabeleceu-se em Jaffa, mas depois se mudou para Haifa, que se tornou sua cidade até seu último dia. Em Haifa, foi membro do conselho editorial do jornal comunista Al-Ittihad, o único jornal árabe-israelense independente que começou a ser publicado antes de 1948 e continua até hoje. Ele morava em Wadi Nisnas, um bairro árabe localizado na parte baixa da cidade de Haifa, que preservou em grande parte sua identidade como bairro árabe mesmo após o estabelecimento do Estado, apesar da fuga de muitos residentes árabes. Esse bairro serviu de pano de fundo para uma das obras mais famosas de Sami Michael, “Um Trompete no Uádi” (1987), que retratava uma história de amor entre uma árabe israelense e um judeu. Em 1955, ele deixou o Partido Comunista e ingressou no serviço hidrológico do Ministério da Agricultura, onde trabalhou por décadas. Ele atingiu 96 anos de idade quando morreu, permanecendo ativo até seus últimos dias.

Podemos dizer com muita razão que, com o falecimento de Sami Michael, perdemos um dos mais corajosos intelectuais que viveram aqui. Concordando-se ou não com suas opiniões, sua importância como uma voz ousada, significativa e destemida na vida pública israelense não pode ser negada. Ele não era apenas um escritor talentoso que revelava em seus textos a diversidade da sociedade israelense, era também um indivíduo extraordinário, um defensor dos direitos humanos que nunca se curvou ou tentou agradar a nenhum grupo político e nunca se rendeu a qualquer ideologia da moda. A voz sábia e intransigente de Sami Michael tem um valor que levará muito tempo para ser totalmente compreendido.

E sim, ele pagou um preço por isso. Seu primeiro romance, “Iguais e Mais Iguais” (1974), que lidava com a discriminação étnica sofrida pelos imigrantes dos países islâmicos, foi mal recebido pela maioria dos críticos que não gostaram de sua descrição dura dos personagens da “Maabara” (campos de absorção de novos imigrantes da década de 50), que refletia uma realidade social que não era fácil de ser vista, nem do fato de que isso vinha de um “funcionário do estado cinzento” que não fazia parte de nenhum grupo literário, e era desconhecido (naquela época…). 

Olhando em retrospecto, é claro que os mesmos elementos que eram “difíceis de digerir” em sua escrita nos anos 70 – especialmente seus aspectos autobiográficos e ideológicos que apareceram de várias maneiras ao longo de suas obras – trouxeram uma mudança lenta, mas significativa na literatura israelense. Pouco mais de uma década depois, seu livro “Um Trompete no Uádi” alcançou tremendo sucesso, traduzido para várias línguas (incluindo português) e foi adaptado para uma peça de teatro e um filme premiado.

Seu extenso corpo de trabalho inclui romances, livros para jovens e crianças, peças de teatro e ensaios, entre os quais se destacam: “Custódia” – que trata de um grupo de ativistas judeus e árabes de esquerda durante a Guerra do Yom Kippur, e “Vitória” – que conta a história de vida de uma mulher judia desde sua infância em Bagdá até sua velhice em Israel. O livro alcançou um enorme sucesso, foi também traduzido para o árabe e circulou no Iraque e em todo o mundo árabe.

Como alguém para quem a língua e cultura árabe eram uma parte autêntica de sua identidade, Michael também trabalhou para aproximar a cultura árabe dos leitores israelenses. Na década de 1980, ele traduziu para o hebraico “A Trilogia do Cairo”, uma trilogia de romances históricos do escritor e intelectual egípcio Naguib Mahfouz, que foi muito bem recebida pelos leitores israelenses.

Seu trabalho expôs a sensibilidade social que o levou a lutar pelos direitos humanos. Em sua escrita, ele deu lugar central ao “outro” como ele é – judeus “sefaradita”, árabes, mulheres e pessoas com deficiência. Suas experiências de infância e juventude em Bagdá, bem como a experiência da imigração para Israel e as revelações de desigualdade e discriminação em relação aos novos imigrantes e à tensão social árabe-judaica, todos constituem os componentes de sua obra, caracterizada por um estilo direto que apela às emoções, autenticidade e, acima de tudo, à dimensão social. Não é de admirar que ele tenha sido eleito presidente da Associação pelos Direitos Civis, cargo que ocupou até 2023. 

Michael era um ateu assumido e expressou suas opiniões sobre isso em várias entrevistas. Após a exposição do Underground Judeu em 1984 (há 40 anos nesta semana), ele escreveu: “Não há ideologia, humanista, racional,  que possa justificar e desculpar a ganância do nacionalismo judeu de hoje… deste pacto impuro só pode brotar terror.” 

Sami Michael acreditava que Israel nunca enfrentou diretamente os três problemas fundamentais que o acompanharam, em sua visão, desde sua fundação: o lugar de Israel no mundo árabe, disparidades raciais e étnicas, e religião versus secularismo. Ele argumentava que os judeus sefaraditas que chegaram após o estabelecimento do Estado eram considerados pelo antigo establishment ashkenazi como primitivos e inferiores, falando a língua do inimigo e praticando alguns de seus costumes. Desde o estabelecimento do Estado de Israel, essa divisão étnica, ele argumentava, não se curou e assumiu a forma de racismo, com expressão social em diferenças de classe. 

Ele se opunha à ideia de “identidade oriental” e argumentava que era um produto da oposição ao “campo ashkenazi” na tentativa de manter a hegemonia cultural e econômica dos ashkenazim. Ele também se opôs à inclusão de judeus dos países islâmicos como um bloco cultural, argumentando que cada diáspora judaica tinha sua própria cultura e história antes que o árabe se tornasse a língua dominante nesses países.

Em relação ao conflito árabe-israelense, ele escreveu: “O conflito nacional entre Israel e o mundo árabe gradualmente se transformou em um conflito religioso entre o judaísmo e o islamismo. Vivemos na era dos dias de glória da lei judaica, assim como da Sharia islâmica. Ano após ano, as fortalezas da democracia e do secularismo estão desmoronando diante de nossos olhos, sob a pressão constante do nacionalismo religioso.”

Deve-se notar que, dentro do corpus diversificado e altamente qualitativo da literatura israelense que foi traduzida para o português, infelizmente, o lugar de Sami Michael ainda não foi reconhecido. Exceto por um de seus livros que foi traduzido para o português até o momento, entre dezenas que ele escreveu, o público brasileiro ainda não foi exposto a ele, o que é uma pena. 

Talvez este artigo seja capaz de mudar essa realidade? Vocês não ficarão desapontados.

Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.

Foto: WikimediaCommons

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